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Caso Kiss, um ano e quatro meses depois da tragédia – por Atílio Alencar e Bibiano Girard (*)

(*) Entrevista originalmente publicada na revista O Viés

Santa Maria passou por seu dia mais triste no dia 27 de janeiro do ano passado.  242 jovens foram vítimas de uma sucessão de erros que envolveram desde a inoperância de fiscalização do poder público até a prepotência da iniciativa privada em utilizar material altamente tóxico num ambiente fechado.

De lá para cá, a cidade vem enfrentando uma sensação de abandono. O caso do incêndio da boate Kiss não ultrapassou as instâncias da consternação pública. Os donos do estabelecimento estão soltos, o Ministério Público caminha a passos lentos – mesmo sob a veemente pressão dos pais e vítimas da tragédia – e o poder público, acusado de negligenciar seu papel fiscalizador, lava as mãos com tranquilidade.

Desde aquela data fatídica, foram criados na cidade alguns movimentos que atuam diretamente reivindicando justiça ao caso, como o movimento Santa Maria do Luto à Luta e a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria. Sendo as duas organizações as mais importantes e ativas quanto ao caso, conversamos com integrantes dos dois grupos para falar sobre a luta por justiça e a movimentação social que promovem.

Do primeiro, conversamos com Carina Mignon. Da Associação, Sérgio Silva, também pai de vítima.  Ambos destacam a revolta dos pais e amigos quanto à fragilidade dos grupos e das famílias perante a politicagem local: “os interesses do empresariado infelizmente falam mais alto”, diz Sérgio.

Em fevereiro de 2014, a prefeitura retirou várias faixas expostas pelo Movimento Santa Maria do Luto à Luta em locais públicos. Segundo a prefeitura, as faixas foram retiradas porque não tinham autorização para o uso do espaço. Como se formou essa situação?

Carina Mignon (CM): As faixas com críticas ao prefeito Cezar Schirmer e ao Ministério Público foram recolhidas pelos fiscais da prefeitura. Quando fomos até eles, disseram que teríamos que fazer um documento protocolando o pedido de devolução dos banners. Se os banners se enquadrassem nos pré-requisitos deles, seriam devolvidos. Mas no meio disso tudo, eles também disseram que além de estarem em lugares indevidos, as faixas seriam ofensivas às pessoas que estavam representadas nelas, ou seja: prefeito, ministério e vereadores. Foi a alegação que fizeram. Mas somos de um movimento que grita por justiça. O chargista Latuff, quando fez a charge exposta, ouviu toda nossa história. Não omitimos nada, e saiu disso a charge, da nossa história. Foi o próprio Secretário de Desenvolvimento, Renato Brunet, que alegou que o conteúdo dos banners era ofensivo.

Sérgio Silva (SS): A prefeitura luta por uma suposta democracia entre aspas. Na hora que cidadãos foram se manifestar, a prefeitura foi lá e retirou. Foi arbitrária. Não sabem receber crítica. Poderiam ter usado esse poder de polícia na Kiss. A frente da boate tinha sido toda alterada, estava irregular. Cadê a fiscalização empenhada que agora retira faixas do centro da cidade? Na boate não fizeram a ação de polícia que exerceram sobre meia dúzia de faixas. Estão assinando o atestado de incompetência. A autoridade deles surge quando convém. Até então, o Ministério Público disse que a prefeitura não tinha poder de polícia. Mas tem poder para tirar faixa, deter manifestação popular?

Como vocês analisam a importância da manutenção do espaço de vigília na praça Saldanha Marinho (a mais central da cidade, em frente ao gabinete do prefeito, distante menos de duas quadras da boate)?

CM: A princípio, o que buscamos é chamar os pais para que venham participar das vigílias. Aquele espaço é muito importante para nós, pais, porque simboliza no centro da cidade que estamos em luta, que vamos continuar pedindo justiça. É um espaço pra mostrar que, por mais que a cidade queira nos empurrar pra debaixo do tapete, porque nós somos uma parte “feia” da cidade, por mostrarmos que a corrupção matou os nossos filhos, a gente está aqui, a gente vai continuar gritando.

A pressão por abandonarmos o local ocorreu em outras épocas, mas agora não, acredito que tenha sido superado. Antes sim, até nos falaram por telefone, sempre por telefone, que se a gente não tivesse retirado aquela faixa que dizia “242 na conta do prefeito”, que inclusive sumiu, eles [a prefeitura] iriam remover o espaço da vigília. Eu disse “tirem a vigília da praça, que eu ponho a vigília dentro da prefeitura”. Mas agora acho que isso já foi superado, acho que não vão ter coragem de retirar de lá.

A Associação estava com dificuldades para conseguir pessoal para ficar no espaço da vigília, não tinham alguém que pudesse administrar o local. Então o Movimento do Luto à Luta resolveu assumir. Como foi cogitada a retirada da vigília, nós dissemos: “não, espera aí, nós assumimos então”. Nós não temos segurança para o espaço. Amanhece tudo sujo, banners com fotos de vítimas já foram roubados, rasgados, coisas assim, que mexem com a gente.

SS: É o local onde dizemos tudo o que aconteceu, é não aceitar o esquecimento. Além de ser um local para manter viva a história. Se abandonarmos a vigília, cai tudo no esquecimento, porque infelizmente algumas instituições de Santa Maria, como as partes empresarial e política da cidade, querem abafar tudo de qualquer maneira. Acham que 242 é como se fosse 1. Temos aquela história do menino que morreu na boate Absinto. Alguém lembra o caso? Não, esqueceu-se tudo e passou. Então o espaço da vigília para o [movimento Santa Maria do] Luto à Luta e para a Associação é primordial.

Num primeiro momento, a associação pensava naquele local algum monumento que lembrasse a causa, como um anjo da justiça. Estamos até pensando e construindo esse projeto com o arquiteto [Mauro] Pozobonelli, que está pensando no formato da figura, que deve ir junto ao nome da garotada toda vítima da boate. Mas passou um tempo e percebemos que retirar a vigília dali não é o caso. Pois além de ser um local de manifestação nossa, mantemos viva a história para não cair no esquecimento, porque, pelo outro lado, por uma meia dúzia de bobos, tudo já tinha terminado.

O problema é que a sociedade cai, um pouco, nesse jogo de esquecer, porque nós somos comandados pelo empresariado, que não aceita perder a boca, perder os valores de aluguéis e outros lucros mais. A parte política é comandada pelos empresários. Se fosse outro prefeito que estivesse no cargo, o pessoal teria expulsado da SUCV [Palácio da Sociedade União dos Caixeiros Viajantes, onde está localizado o gabinete do prefeito].

Mas como o Schirmer (PMDB) foi colocado lá pelos empresários que mandam na cidade, assim se mantém. É um conchavo de interesses. Eu não tenho nada a ver com PT, com PSOL, não tenho. Sou funcionário público, trabalho e recebo o que necessita minha família, não dependo de partido algum, não sou candidato. Mas pensa se fosse um prefeito do PT ou do PSOL, tinha saído dali no mesmo dia. Os empresários construiriam uma bola de neve até atropelá-lo. Mas como é um cidadão da parte empresarial, que está ali porque empresários o elegeram, tudo se mantém paradinho. Senão, o prefeito já teria caído há muito tempo.

Sobre o suposto projeto de um memorial que circulou pela imprensa local, qual a impressão do movimento sobre a ideia apresentada?

CM: Como movimento, sabemos que isso é um projeto para daqui um tempo. Não é uma coisa pra agora. Tanto é que nós ainda não temos uma opinião deliberada como movimento sobre esse projeto. Porque é tanta coisa que acontece, que não adianta a gente pensar lá adiante. A gente tem que pensar no agora, caminhar com o que a gente tem agora. Mas eu, Carina, o que eu vi [do projeto], eu não gostei. Eu vou ser uma mãe que, mesmo que o movimento seja a favor, eu não concordo. No máximo ali [no terreno da boate] era pra ser construído um jardim, uma coisa assim, algo nesse estilo. Mas enquanto movimento, nós do Luto a Luta não estamos especulando esse tipo de coisa, não é do nosso interesse agora pensar nisso. Depois, lá adiante, quando houver algo definitivo, a gente toma uma posição. A gente sabe que tem todo um processo criminal antes. Num prazo de uns cinco anos, nem tem como construir nada ali. A gente tem que ser pela lógica, pelo racional, é assim que o Luto a Luta tenta trabalhar.

SS: O projeto de construir um memorial é uma ação nossa, da Associação. O artista que está se envolvendo com o projeto é o Mauro Pozobonelli, santa-mariense que reside nos Estados Unidos. O Mauro está criando esse memorial. O memorial vai muito além, porque não depende só da posição nossa e do artista. Teremos que fazer uma assembleia geral com todos os pais para fechar se será aprovado o projeto. Questionar: “é isso que vocês querem?”, “É isso que vamos fazer?”. Se vai sair daqui um, dois ou dez anos, não se sabe.

No início, quando lançamos o projeto do memorial, houve uma crise com os arquitetos da cidade. Muitos chegaram até nós para questionar porque o projeto que foi parar na mídia seria do artista plástico que está morando nos Estados Unidos. Isso foi em maio do ano passado, quatro meses depois da tragédia. Até agora ninguém mais trouxe projeto algum. Houve da parte do artista Mauro a iniciativa de apresentar um projeto até com estudo de capitação de recursos. Por parte dos arquitetos daqui, parece que o fuzuê causado foi uma jogada política, porque até agora não apresentaram mais nada.

Numa reunião recente da Associação, criamos e colocamos em ata o Grupo de Ações para o Memorial, que será gerido por D. Vera, uma arquiteta que perdeu o filho na tragédia, Mauro Pozobonelli, o artista plástico que fez o projeto, Milton, pai de vítima, que é engenheiro; e outra mãe, Marise, que vai assistir tudo como conselheira. Essas quatro pessoas estão trabalhando com o memorial.

Mas como eu falava, nem tudo depende só de nós. O local [onde funcionava a boate] é particular, não sabemos o que a Justiça vai determinar para aquele espaço. Se precisar desapropriar, será feito pela prefeitura. Não sabemos se o dono vai aceitar a ação de desapropriação. Então ter um projeto, como o nosso, é uma coisa: dizer se ele vai funcionar e a partir de quando, é outra. Dependemos da burocracia e das assembleias com os pais. O memorial está no campo da ideia. O local ficou marcado, é claro. Podem colocar o prédio mais lindo, mas ali será sempre o ponto marcado.

Depois da ocupação da Câmara de Vereadores ano passado, quando o movimento Tarifa Zero, junto à Associação e ao Movimento Santa Maria do Luto à Luta, reivindicaram suas pautas por seis dias de ocupação, muitos grupos seguem ativos em protestos, marchas e coletivos da cidade. Como vocês têm se relacionado com outros movimentos sociais e qual a visão sobre os protestos que ocorrem contra o aumento do preço da tarifa em Santa Maria, por exemplo?

CM: Nós do Luto a Luta temos um relacionamento bem estreito com todos os movimentos estudantis e sociais da cidade, são nossos aliados. Todo e qualquer protesto e manifestação organizado por esses grupos, a gente deve apoiar. Entendemos que também somos excluídos, fomos excluídos quando mataram nosso filhos, quando ficamos sem justiça. Esses outros movimentos também são excluídos de certa forma, e a gente tem que se unir. É assim que a gente caminha, é assim que a gente faz.

Há pais sendo hostilizados pelo poderosos da cidade, dizem que alguns pais têm apenas intensão partidária nos movimentos. Acho isso ridículo. Simplesmente ridículo. Porque um pai ou uma mãe, quando está defendendo um filho, não vai ser usado por ninguém. A gente não vai ser usado. Ninguém consegue dominar um pai ou uma mãe furiosa. Não tem como alguém dominar. Eu não me importo, quer falar que sou de partido tal? Tô com a minha consciência limpa. O movimento sabe qual a linha que está seguindo, entendeu? Tenho amigos que são de partido, vou continuar tendo e vou sair pra rua com eles, se eu tenho que sentar e tomar uma cerveja com eles, eu vou sentar e vou tomar. O que vale são as ideias que seguem. Os partidos estão aí, existem por causa da democracia. Cada qual levanta a sua bandeira. Mas esses comentários são absurdos, é uma tática sem fundamento.

SS: Pode notar que estou respondendo como Sérgio, em alguns casos, e como pai da associação, em outros. A associação é uma instituição, tem CNPJ, é um ser jurídico. Então dentro dela trabalhamos com pessoas de todas as ordens. Eu, Sérgio, sou simpático aos movimentos sociais da cidade, sem eles nós estaríamos perdidos. Nós como sociedade precisamos de movimentos sociais. A associação não vai responder se apoia movimentos. Os pais que fazem parte dela, sim. O Movimento Santa Maria do Luto à Luta é apenas um braço da associação. Eles todos fazem parte da associação.

Tenho 50 anos, sou da época que jovem não discutia nada. Tudo calado. Tem que mudar isso. Pode ser motivo de nossos problemas como nação não termos apoio aos movimentos sociais. Com um povo que não discute mais nada, a política vira uma máfia. E isso implica nessa noção de quem não sabemos mais com quem falar. Na Câmara de Vereadores de Santa Maria, por exemplo, não tem mais como saber quem é direita, quem é esquerda. Quando se vê, estão jogando tudo para o mesmo lado.

A associação trabalha mais na parte burocrática desses problema, trata com advogados, vai ao Ministério Público, vai a Brasília pedir ajuda do Ministério da Saúde. Tudo é burocracia, e aqui que trabalha a Associação. A associação é uma reunião de pais, e isso reúne várias ideias. Existem pais que não querem entrar na Justiça, mas que quer fazer parte de uma ação social. E assim vários casos. A Associação tem um estatuto com diversos objetivos, diversas finalidades, divididas em grupos e movimentos. O Movimento do Luto à Luta é responsável pela parte de mobilização social, é um braço da associação.

Como é para vocês encarar e ter encarado toda essa reviravolta na vida? Num dia, vocês eram pessoas anônimas, e de repente tornaram-se foco de atenção da imprensa, de entidades, da comunidade em geral. Como tem sido o cotidiano de vocês depois da tragédia?

SS: Abandonei a faculdade, minha cabeça funciona 24 horas na associação. Posso estar em casa, mas estou pensando como procurar justiça. Eu vivia um mundo de ilusão. Não que achasse que tudo era lindo, tinha minhas reivindicações. Mas quando você entra no meio do bolo da Justiça, da Política e do Governo, aí você vê que se não rezar, não tomar alguns remédios, acaba cometendo coisa pior, como um suicídio.

CM: Eu não tenho orgulho nenhum de estar no lugar que eu estou. Daria tudo para ter minha vida normal do jeito que eu tinha, com a minha filha do meu lado. Não me arrumo para ir a entrevistas porque a questão não é a minha exposição. Como é a minha vida hoje? Existem pessoas que eu não consigo nem mais falar. Cada leitura de inquérito ou documento é um parto, um sofrimento, porque cada vez que a gente tem que ler esses relatórios, é como tocar o dedo na ferida. Como se todo dia acontecesse o 27 de janeiro de novo. É muito dolorido

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