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Parado em frente à porta – por Márcio Grings

márcioEle detesta o verão. O mês de março tá longe de acenar com prenúncios de que a estação quente dará adeus. Pelo contrário, falta muito tempo para o inferno acabar. Uma sensação estranha de que tudo passa muito rápido o acompanha há dias. A vida dando adeus a cada segundo. No entanto, hoje acordou com o mundo se movendo em câmera lenta. O toca-discos ligado no volume mínimo não chega a competir com o barulho do vento norte lá fora. Ele já queimou todas as fichas, não tem mais pra onde ir, nem mantém a mínima intenção de se movimentar de onde está. Se ele voltasse a vê-la, ficaria em dúvida entre matá-la ou beijá-la. Da última vez, ele ficou de pé, em frente à porta dos fundos, chorando como uma criança, enquanto o táxi que a levou acelerava estrada abaixo e jogava poeira nos olhos dele. Um pateta estúpido é isso que ele é.

Uma lâmpada fica piscando na cozinha. Deve ser mau contato. A cabeça dele dói com aquele pisca-pisca dos diabos. Parece que o cérebro pede mais espaço dentro do crânio. Quem sabe quando o suporte da fosforescente despencar sobre seus cornos ele tome uma providência. É quinta-feira à noite, e a TV ligada num programa de humor não lhe arranca o mínimo esboço de um sorriso, na verdade o irrita aos extremos. Desliga. Olha pela janela do corredor e através do celofane vermelho que foi colocado no lugar de um vidro que quebrou, vislumbra uma estrela cadente cor de cereja. Pega um copo, coloca três pedras de gelo e calibra com a última dose de Jim Bean. Acabou. Gosta de ficar olhando o dourado do líquido derretendo os pequenos icebergs. Vai até a sala, aumenta o volume do som e dá uma sacada na capa de um coletâneas de guitarristas da Atlantic Records. “Travellin’ blues” do cego McTell parece perturbar o danado do fantasma que ainda o assombra. Noite após noite, aquele demônio não dá pintas de que vai dar o fora dali.

Ele sabe, quando amanhecer, nada de diferente está previsto no boletim de ocorrências. O trem vai continuar passando na Sete de Setembro e o sino da Catedral irá badalar no mesmo horário. Todos sabem por que as locomotivas ainda se movimentam sobre os trilhos e por quem os sinos dobram. Esse assombroso replay o deixa intrigado. E seu corpo já sacou faz tempo, ele não pode vencer nenhuma maldita guerra. De todo modo, o coração não desiste. Uma noite dessas – Ele até dançou com uma estranha, e aquela mulher só lhe fez lembrar que ainda existe outra pessoa dentro dele.

A geladeira está vazia. Na verdade, há uma maça mofando por lá faz um bom tempo. Não importa. Ele comerá quando tiver fome, beberá quando tive sede. Vai tocar sua suposta vidinha sem perspectivas até onde der pé. E mesmo quando seu corpo começar a perder as forças, ainda assim manterá esperanças de que aquela mulher retorne pela mesma porta que um dia saiu. Daí o toque suave da mão dela vai acariciar o seu rosto e resgatar a velha magia que os movia antigamente. Existem palavras que não precisam ser ditas. Da mesma forma que ela o deixou parado em frente à porta dos fundos, sem a chave, do lado de fora, a chuva batendo no rosto e se misturando as lágrimas. Foi naquele dia que ele pode perceber o real sentido da palavra “blues”.

* Escrito em janeiro de 2013, e desde então engavetado. Texto inspirado na história contida em “Standing in the doorway”, canção de Bob Dylan lançada no álbum “Time Out of Mind” (1997).

* Dia desses, tirei da gaveta outra crônica que busca como porto de partida o mesmo disco de Bob Dylan. O texto foi publicado por aqui (06/02), coincidentemente há exatos 30 dias. Eis o LINK http://zip.net/bbqKQq 

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