Coluna

O teatro de Akira – por Bianca Zasso

O pulsar do público, os passos contados, a ansiedade de quem espera na coxia. Os pequenos detalhes que constroem a magia do teatro podem até não aparecerem nos filmes, mas o caso de amor do cinema com os palcos é antigo e já rendeu bons frutos. Enquanto uns retratam os bastidores, também existe a turma que adapta para as telas textos célebres. Porém, de vez em quando somos surpreendidos por uma invasão. O solo sagrado do ator abre a porta e imprime sua força no Sétima Arte. Um diretor da magnitude de Akira Kurosawa brindou seu público com um exemplar máximo da linguagem teatral embalada (com luxo!) para o cinema.

Ralé, lançado em 1957 e inspirado na peça homônima do dramaturgo russo Maximo Gorki, pode não integrar a lista de obras-primas do mestre japonês, mas representa bem uma faceta de Kurosawa pouco lembrada quando se aborda o seu trabalho: sua graciosidade para conduzir melodramas. Óbvio que se o colocarmos ao lado de outro mestre, Yasujiro Ozu, especialista em retratar os dramas da sociedade japonesa das décadas de 20 e 30, Ralé soa como um filme menor. No entanto, é impossível não se emocionar com os retratos construídos por Kurosawa, representando a classe mais pobre e sua forma única de lidar com as agruras do cotidiano.

Mas voltemos ao teatro. Além de basear-se em uma peça, a trama de Ralé ocorre praticamente toda em um único cenário, um cortiço que um grupo de pessoas muito pobres chama de lar. Em comum entre os hóspedes está o desejo de reverter a realidade miserável na qual se encontram.  Para apaziguar os ânimos, eles buscam válvulas de escape na bebida e no devaneio. Esta ilusão permanente, a busca incessante por algo que vá mudar suas condições, é algo presente nas temáticas abordadas por Kurosawa, como bem explica, nos extras do DVD*, o pesquisador Donald Richie.

Sem aprofundar muito os dilemas dos personagens, Kurosawa coloca o espectador na posição de voyer, usando sua câmera quase sempre parada e atenta, de forma que acompanhamos as conversas, brigas e choros como se estivéssemos no ambiente. Com uso mínimo de close-ups e valendo-se muito pouco do tradicional plano e contraplano, Ralé parece acontecer em um palco. Apenas quando os personagens saem da pensão rumo à rua é que lembramos que estamos diante de uma tela.

As interpretações fogem do modelo Kabuki, um dos teatros mais tradicionais do Japão e presente em outros filmes de Kurosawa, como Ran e Trono Manchado de Sangue, e não há heróis ou vilões bem definidos dentro da trama. O que temos é um grupo, onde nenhum ator se sobressai ou é mais valorizado pela câmera que outro.

Ralé é sobre pessoas, e não sobre um típico específico de personalidade. Sem gestos coreografados e vozes empostadas, os personagens trazem os sotaques e trejeitos do homem comum, passando longe da elegância formal dos samurais e xoguns, tão comuns nas produções nipônicas da época de seu lançamento e que ajudaram a vender para o Ocidente a ideia de que todo o Japão do século XIX era luxo, guerras e cerimônias.

A trilha sonora reforça a veia naturalista de Ralé. Afinal, não há um acompanhamento musical para guiar as reações do público, algo que Hollywood utiliza sem pausas. Quando há música, ela é produzida pelos atores, seja por meio do canto ou batucando em algum objeto. Há também o destaque para os sons do cotidiano: o arrastar dos quimonos, o toque nos objetos, as cobertas mudando de lugar. O que parece banal é parte da trilha sonora de Ralé, fortificando a ideia teatral, onde cada gesto é mais que um simples movimento. Há história, desenvolvimento e significado nos pequenos afazeres.

Lançado no mercado brasileiro com qualidade pela distribuidora Versátil Home Video, integrando o box O cinema de Kurosawa, que ainda apresenta outros 3 filmes do diretor, mais um documentário, Ralé merece atenção não só por ser um trabalho de um grande cineasta, mas por ajudar a provocar nosso olhar, tão acostumado a um mundo mágico de plástico, construído com a música certa tocando na hora exata e onde até as dores da alma tem a sua elegância. Realidade é arte. Das boas.

Ralé (Donzoko)

Ano: 1957

Direção Akira Kurosawa

Disponível em DVD no box O cinema de Kurosawa, da Versátil Home Video

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