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Viagem – por Pylla Kroth

Geminiano, hiperativo irrequieto, barulhento, o sujeito era espoleta mesmo. Talvez uma das razões dele escolher o Rock ‘n’ Roll como sua segunda profissão. Sim, porque ser somente artista no Brasil nunca lhe permitiu uma vida digna de cidadão, salvo raras exceções.

Certa noite depois de anos de shows fazendo as pedras rolarem, para amados, mal-amados, loucos, alegres, tristes, anjos e demônios, o cara acordou no meio da noite e foi até o banheiro com vômito, achava se tratar de mais um dos sintomas Bukowski da caminhada de Poeta. Ao ligar a luz, percebeu que era sangue purinho, sentiu um gosto amargo na boca, uma coceira na orelha, enfiou o dedo: sangue, urinou: sangue, seus olhos estavam lacrimejando: sangue. Agora bem acordado, sente um frio na barriga, medo, suor, fraqueza. Saiu em disparada para o plantão médico. Chegando lá, o médico mais assustado que ele chama um especialista que enfia uma câmera na goela do sujeito e constata: estourou uma veia no esôfago, por conta de varizes esofágicas. Vida desregrada, noites mal dormidas, excessos, etc, etc.

Feita cauterização, o médico manda procurar auxílio, alertando “coisa grave”. O cara volta pra casa, mas nem bem clareia o dia e novamente vômito e sangue. Pedir socorro pra quem? Tocara pra milhares de pessoas, milhares de amigos, mas nenhum neste momento? Nem os anjos? Ah!!! A Mãe! Família, logo veio ao pensamento; mas moram a mais de 200 km…

Olha para o capacete de sua motocicleta como o moçinho olha pro cavalo amigo na hora de ser atingido por um franco atirador e se manda pra estrada: 100, 120, 130 km\h, de vez em quando levantava o capacete e, em movimento, largava o sangue do vômito em andamento. A 30 km antes do final do percurso, fraqueja e, diminuindo a velocidade, cai ao chão, em câmera lenta. “Calma! Não foi nada!”, respira, levanta, ergue a motocicleta que está ao lado e pela primeira vez olha ao céu e suplica aos Deuses: “me ajudem! Falta pouco”. Respira fundo, religa o motor e segue.

Ao chegar na casa da família, tenta se manter forte, dizendo que não deveria ser grande coisa, que “logo passa”. Mas nem bem senta ao berço materno e novamente vomita. De pronto todos ao redor perceberam a gravidade. “Vamos! Urgente. Hospital!” O médico atende e logo diz não estar ao seu alcance a solução, que o jeito é ir à cidade vizinha,  e lá, salta fora, manda pro centro maior.

Sem pestanejar a família age. “Vamos! vamos!” E o sujeito ainda com calma diz em bom tom:”Calma gente! Eu não estou morrendo”! (risos) Chega ao Centro. Ufa! No plantão, alguém reconhece o artista. Acionada a Urgência. E Titãs tocava no radiozinho do Plantão, que sempre fica em volume baixinho em ambientes de Plantões.

Essa foi sua última lembrança, antes de iniciar uma viagem inexplicável. Ou explicável? No corpo físico chamam COMA. Segundos de escuridão, logo abre se um clarão. Estava ele pendurado em um varal, em uma espécie de graneleiro. Mas seu corpo era de um Falcão, longas asas esticadas, junto com várias espécies em formas de animais que lhe pareciam ser todas familiares, com a sensação de que conhecia as há muito tempo. Dali, foi levado para um vale escuro com apenas uma luzinha pequena ao fundo, um riacho de água morna e vários corpos inchados mergulhados. Aproxima-se um homem meigo e, pela primeira vez, é definida uma cor, nitidamente rosa, com ele uma mulher de fala mansa e tranqüilizadora. “Ajude eles, você pode, isso lhe fará bem, tente!”

Assim fez. Entrou na água e como se soubesse o que fazer levou a mão até as pessoas mergulhadas. Seus corpos começaram desintegrar-se e, num ato faminto, leva um pedaço a boca e saboreia, como se seu mal fosse fome. “Que delícia!” Ele sai dali e com o privilégio de sentar-se na cabine do transporte que levava as pessoas livres nas carrocerias. Dali foram levados até uma caverna com várias bifurcações, cada pessoa encaminhava-se em entradas diferentes. Ele entrou na primeira.

Lá dentro estava um homem velho, em frente a uma tela, pintando, sem tintas, duas mulheres também velhas, que porém tinham  peles lisas como jovens. Deitou-se. E sem sair do lugar, foi a outros, que prefere não contar, pois a todas as pessoas que contou a longa jornada em detalhes, partiram deste plano terreno. Detalhe: encontrou lá, sim, duas pessoas que conhecia, porém no retorno tomou conhecimento de que elas haviam partido em um acidente de automóvel. Por lá ficou tempos agradáveis, sentindo-se seguro como se em seu lar eterno.

E passado o tempo, aproxima-se novamente o Senhor vestido de rosa e a mulher meiga dizendo: “vamos? estão a sua espera!!!” “Ir onde? Aqui é meu lugar!!!”, protestou. Mas insistem, e pela primeira vez ele vê a mulher que o tranqüilizava num olhar chorar: “vai querido! Chegou a hora de voltar!”. Levantou, então, espontaneamente e foi indo em direção ao branco total. Acende uma forte luz.

“Onde estou? O que aconteceu? Quem me trouxe? Cadê minhas coisas?” Essas foram as primeiras palavras que conseguiu escrever em uma folha que lhe foi entregue para se comunicar, pois estava na CTI, entubado. Havia passado dias, semanas, mas até hoje ele não entende porque lhe tiraram o direito de ter ficado naquele lugar tão bom. Se existem outros planetas ele não sabe, nem acredita em Ets. Mas o espírito ele acredita ter vida eterna. Ali estava ele, Hospital São Vicente de Paula- Paciente Edson Luiz Kroth – Bloco C -cama 14. Pobre mortal. Planeta terra.

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2 Comentários

  1. Na pele de um escritor/poeta/contista, aplaudo o texto do Pylla. Há um viés fantástico na linguagem utilizada, mas que conflita e choca-se contra a realidade visceral do dia a dia. Parabéns ao “contador” desta história (“contador” no bom sentido) e também ao(s) editor(es) deste canal de notícias!

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