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As voltas do tempo – por Pylla Kroth

Moço do interior, ao completar 18 anos foi se alistar no serviço obrigatório militar. Na famosa inspeção foi logo liberado, pois era filho de lavrador e tinha que auxiliar seus pais na produção e sustento da família! Por ele teria servido, mas foi dispensado. A coisa não andava bem na agricultura, e a política não ajudava em nada, era a época do confisco, muitos colonos se suicidaram por conta das dívidas com o Banco, enquanto outros tiveram que entregar terras, máquinas, silos, graneleiros, e por ai vai.

O pai já preocupado com o futuro do rapazote ouviu no noticiário um anuncio de concursos na capital. Pediu que o filho fizesse a inscrição e tentasse a sorte na cidade grande, mesmo com apenas o ensino fundamental, e então, mais tarde, uma vez que estivesse empregado daria um jeito nos estudos, arcando com seu trabalho os custos acadêmicos.

Ficou um pouco apavorado, mas depois de várias conversas era chegada a hora do passarinho voar sozinho. Dias depois, chegava via correio a confirmação da referida inscrição para o exame. Malas prontas. Mãe e pai na porta, marejados de lágrimas, se despedem do filho desejando lhe boa sorte. Antes disto, seu pai havia consultado um velho amigo que há muito tempo havia feito o caminho inverso, capital interior, e cuja velha mãe morava até o então na capital e, pasmem, sozinha aos 89 anos. A velha só aceitava uma mulher que lhe ajudava com as tarefas no período diurno e ao fim do dia, às 18 horas, a empregada ia embora, portanto assim a senhora poderia dar algumas noites de pouso ao guri.

Tudo ficou, portanto, combinado e a Dona Néglia – era como se chamava –  iria receber o guri as 17horas. Havia a recomendação de que caso passasse deste horário encontraria portão e portas fechadas, pois a Dona Néglia era totalmente rigorosa com horários e pontualidade. Chegou ele à capital apenas com endereços e alguns poucos tostões para táxi e refeições, coisa pra segurar as pontas até o término de uma semana de provas para o concurso.

Tudo pra ele era assustador: trânsito, edifícios, ruas largas, gente estranha. Chega ao endereço e o taxista anuncia a chegada e aponta o número da bendita casa. Pagou, desceu, olhou no relógio de bolso e tudo certo: chegara uma hora antes. Olha para o portão e mais parecia estar diante de um cenário de filmes do Conde Drácula, o casarão parecia centenário, exibindo marcas da inexorável passagem do tempo. Desgastado pelos anos ali estava um enorme portão de ferro fundido, com suas pontas de lança no topo, formas distorcidas de ferrugem e uma campainha do século passado, daquelas que pedem em forma de uma sineta com uma cordinha para ser tocada. Dez metros adiante abre-se apenas um lado da porta de madeira entalhada, a pintura descascada, mais ou menos três metros de altura, rangendo nas dobradiças antigas.

O pavor começou a tomar conta, o que sairá de dentro deste mausoléu? Eis então que surge a Dona Néglia com sua bengala e quebra o pavor com uma imensa gargalhada. Isso lhe deixou mais intrigado, porém: era um riso de alegria ou de quê aquele? Riso de bruxa? Pois, por um momento, lhe parecia estar diante da Madame Mim das historinhas de quadrinhos, a velha corcunda apoiada na bengala exibia verrugas na cara, os cabelos brancos em desalinho tinham uma tonalidade “cor de algodão doce” que parecia sobrenatural e mesmo a voz ao falar, ainda que em tom amistoso e bonachão, tinha tons de voz de bruxa: “bem vindo, menino bom! Eu estava lhe esperando!”, e novamente da outra gargalhada. Cumprimenta e vão entrando.

O cheiro do ambiente era uma coisa que ele jamais esqueceria tão cedo, cheiro de passado, aprisionado e “encruado” pelas décadas nas paredes, no teto, nos objetos e móveis de madeira antigos e soturnos, madeira velha, estuque, flores de plástico, toalhas de renda, tapeçarias desgastadas, cera de velas há muito queimadas nos castiçais de bronze e bibelôs de porcelana em prateleiras empoeiradas, o cheiro acre de naftalina que exala de baús repletos de velhice é perfume fino perto da definição.

Os móveis era outra coisa que o garoto jamais vira: gigantes de décadas passadas, escurecidos pelos anos, madeira antiga como o mundo, torneada em bonitas e pesadas formas distorcidas, uma grande estante numa parede, uma cristaleira mais alta que ele, contendo prataria, porcelana e cristais de perder o fôlego. No meio de toda aquela confusão olfativa, se adivinhavam os odores vindos da cozinha e logo a exótica anfitriã anunciava que a comida pronta e haviam de jantar logo em seguida, pois era hora.

Atordoado das novidades, ainda não sentia nenhum tipo de fome, mas pensou, “o jeito é comer, fazer o que, não tenho outra saída: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Algumas poucas palavras e interrogatórios e ela faz questão de mostrar o quarto que estava a sua disposição. Lá chegando e deixando que acomodasse as poucas bagagens, observou a Dona Néglia que “não se preocupe com o horário, pois às cinco da manhã estarei em pé e de café passado. Venho te acordar” e deu um detalhe “ligue esta velinha ali do abajur antes, depois desligue, pois vai ficar no escuro até chegar na cama, depois de uma cuspidinha do dedos e apague a vela, não esqueça!”

Menino todo desconfiado e tenso assim o fez. Passaram alguns minutos e ele de olhos arregalados no escuro. O silêncio tomou conta, o cheiro dos cobertores lhe incomodava, a escuridão, e agora… havia um “tic-tac” que primeiramente era baixinho, mas agora, em completo silêncio no ambiente estranho, tomou conta de seus ouvidos. Pouco depois, deu um salto ao ouvir um “Cu-co”! Mas felizmente foi apenas uma vez, ao contrário do tiquetaquear que não tinha fim “ufa..”, pensou já atormentado com o dia turbulento, “que barulho irritante!” Procurou respirar fundo e  se concentrar no tic – tac das horas como quem conta carneirinhos, procurar o sono, pois o dia seguinte seria cheio de surpresas e desafios pra ele.

Mas quando sua respiração parecia estar sob controle foi aquele susto, o parasita que antes solfejou apenas uma seqüência de duas notas, desta vez se pôs a cantar como se o dia fosse amanhecer. Que merda! Foi-se o sono! Nova tentativa de controle pela respiração e meia hora depois novamente uma seqüência de apenas duas notas “Cu-Co”! O desespero e a aflição começaram tomar conta. “Como vou descansar com esse barulho nos meus ouvidos ? E o concurso? Tô ferrado!” Passou mais algum tempo de  muitos “tic-tac” e “Cu-co” até que aflorou no rapaz o que costumam chamar aqui no sul  de o seu lado “grosso”.

Indignado, levantou no escuro e bem de mansinho foi até a sala, “nossa mãe do céu!”, o monstro responsável por todo aquele barulho, que ele pouco tinha reparado mais cedo atordoado por tantas novidades que visualizara, era um relógio que tinha o tamanho de um guarda-roupas de duas portas, um gigante de madeira entalhada de dois metros de altura, com dois grandes pêndulos de bronze e uma casinha de madeira no topo. E pensar que mesmo com um grande mostrador de vidro, os ponteiros, os números, não tinha se apercebido de que era um relógio.

Passou uns momentos analisando a situação. Parecia que o “Pardal” tinha sua fortaleza, era daquela casinha que tinha no topo onde abriam duas portinholas que ele saía para cantar. Pensou: “vou ficar na campana e vou ver que tamanho tem o bicho, depois dou um jeito em dar o bote certeiro e calar este danado.” Duas tentativas em vão, pois o bichinho era tão rápido que não dava pra identificar o bandido que lhe roubara o sono.

Voltou para quarto, frustrado, mas foi então que teve uma idéia: “já que não posso pegar o bicho, vou amarrar aquela portinhola de onde ele sai pra sua cantoria”. Olhou pro seu pulso e percebeu a sua borrachinha que os bancos usam para abraçar notas de dinheiro, e quando menino chamava de “liguetinha”, na escola fazia dos dedos uma forquilha para jogar bolinhas de papel nos colegas. E se foi, pé por pé, de volta para a sala. Com cuidado, pegou uma cadeira pra alcançar a porta do castelo do danado e deu um jeito de amarrar antes que reagisse.

Voltou pra cama e novamente a por em prática a teoria da respiração no compasso do tic-tac, mas agora com as pontas dos travesseiros nos ouvidos. O tempo passa e pelo jeito deu certo, enfim chegou o sono e descanso! Quando tudo parecia estar solucionado foi aquele banzé: “Cu-co -Cu-co-Cu-co-Cu-co”!!!!! Salta da cama pensando ser um pesadelo . E não é que o danado agora se pôs a fazer um gritedo que mais parecia um pedido de socorro pra Dona Néglia? “E agora? O que fazer?” Corre em direção a sala com a vela na mão e enfim avista o danado,  mas nisso sai a Dona Néglia do quarto, apavorada: “O que houve? Tá brigando com meu Cuco? Depressa, puxe a corda do pêndulo ao contrário! Ele teve ter se enroscado na janelinha, vamos, rápido! Sobe nesta cadeira”  ordena a velha, “pegue bem em cima”. Ufa. Ele obedece prontamente, e pouco depois a confusão cessa.

Dona Néglia olha para o guri e pergunta: “como ele está?” e o mesmo responde um tanto confuso “olha, eu acho que está bem!” Dona Néglia parece satisfeita pelo menos no momento e então diz que já que está tudo aparentemente bem “volte dormir, pois tens compromisso cedo. Amanhã chamo o médico do Cuco, coitadinho, ele está muito velhinho! Em quarenta anos nunca falhou assim, deve ser coisa da idade mesmo, está caducando!”

Ainda um tanto atordoado, o rapaz voltou para o quarto tentando entender a relação da Dona Néglia com o relógio, que tinha acabado de presenciar. Talvez então ele fosse muito jovem para compreender aquela forma dela tratar o Cuco como se fosse um ente vivo, e querido, algo que pulsa, respira e sente, que precisa até mesmo de médico, que está caducando, envelhecendo.

Definitivamente talvez fosse jovem demais para perceber a extensão do fardo de uma existência que se tornou velha e solitária, que entardeceu pegando amor talvez não pelos objetos que a cercam em si próprios, mas pelas lembranças e saudades impregnadas neles, tão impregnadas quanto o odor que exalava daquela casa antiga, lembranças e saudades provavelmente daqueles que a habitaram uma vez, que sentaram nos mesmos sofás, nas mesmas cadeiras, comeram à mesma mesa, dormiram nas mesmas camas e ouviram à noite o mesmo “tic-tac” e o mesmo “Cu-co”.

Mas os anos se passariam para ele também, até o novato do interior estar maduro de anos e, agora já velho, ele conta esta e outras histórias aos seus netos e sente saudades de muitos dias que não voltarão jamais, onde o tempo dava para sentir na pele e no “tic-tac” das horas a lentidão  e o encanto pela  luta em ser alguém na vida com simplicidade e prazer. Agora ele sabe. A Terra gira em torno do Sol numa velocidade estonteante e o Tempo dá muitas voltas!

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a imagem que ilustra esta nota é reprodução da internet.

 

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