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Sobre perder ou ganhar – por Orlando Fonseca

Lembro de uma conversa com uma menina de sete anos, há muito tempo, que me disse não existir amanhã. Eu a olhei intrigado, não pela sugestão inquietante do tema, mas pela pouca idade dela. Sem tirar os olhos dos meus, o rosto contraído de quem está falando sério, de quem está dizendo algo produzido depois de muito pensar, ela emendou: é sempre hoje! Algum tempo depois, Renato Russo eternizaria em verso: “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Porque se você parar pra pensar, não verdade não há.”

Tempo é uma dimensão muito complicada para quem, com as ferramentas da filosofia, tentar definir, ou mesmo entender. Mas só uma criança é capaz de uma redução fenomenológica tamanha, deixando de lado equações matemáticas, teorias quânticas – a menina de que falei jamais teria ouvido falar nisso, eu mesmo, só teria esta oportunidade alguns anos depois. A rigor, temos consciência apenas de sua passagem, pelas marcas que acumulamos nesta aventura. Para dar uma ordem ao caos, a civilização inventou o relógio, o calendário, a agenda, mas tudo que se pode marcar ali é ilusão a respeito do tempo, pois aprisioná-lo em números é tão somente uma convenção. Todos os truques para dar substância ao que não se deixa aprisionar em conceitos é apenas isso, truque. O resto é história, a nossa história.

A gente costuma definir como “ganhar tempo” os expedientes usados para postergar uma ação, uma decisão, mas o termo adequado é “procrastinar”, como uma sentença para demarcar a falta de virtude em apostar na existência do amanhã, colocar as fichas em algo que ainda não nos pertence. Não há ganho possível em negociar o passado, talvez o que nos pertença de fato. Já o futuro é uma projeção da nossa mente, baseado em tudo o que se vivenciou até o presente, um absoluto, cuja certeza relativa só adquire sentido quando podemos refletir sobre ela – e aí já é passado.

Este ano de 2020 é peculiar para se pensar em ganhar ou perder tempo. Annus terribilis, sentenciaria a Rainha da Inglaterra se vivesse a experiência de nós, plebeus. Não há nada de muito nobre na conjuntura, talvez só no esforço heroico das equipes médicas pelos hospitais do planeta. Não perdemos tempo ao dedicarmos atenção e cuidado com algo que pode levar horas, semanas ou meses. Mesmo alguém que seja reprovado em um exame e é obrigado a repetir um ano escolar não está perdendo tempo. Na verdade, está ganhando tempo de maturidade. No entanto, podemos jogar fora todo o tempo dedicado a algo, se por um descuido tomarmos atitudes impensadas.

Uma dessas situações é, depois de 9 ou 10 meses de distanciamento social, uso de máscara e álcool gel em abundância jamais vista, em face do verão e seus apelos, abandonar os cuidados contra a Covid-19. O apelo da vida natural, da roda impassível do tempo cósmico, do verão que se aproxima é imenso, mas ganhar tempo e preservar a vida é necessário. Quem pensa ser o distanciamento uma perda de tempo só está pondo a vida em risco. Os negacionistas estão aí para confirmar que quem se descuida dos protocolos só adia a possibilidade de contrair o vírus, e muitos desses estão na UTI para aprender a dar valor à vida. Diria que é uma questão de tempo termos antídotos poderosos contra o coronavírus, e uma coisa que a pandemia deveria ter-nos ensinado é a paciência. Ter prudência, por mais alguns meses, manter os cuidados do isolamento social é uma aposta na vida e na humanidade.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: Crédito da foto: Christo Anestev por Pixabay

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Um Comentário

  1. É um tipo de esquizofrenia que afeta algumas pessoas por aí. Oriundos do funcionalismo publico, UFSM preferencialmente (a galinha dos ovos de ouro em cima da torre de marfim). Acham que são ‘exemplo’ ou que muita gente além do circulo imediato dão, como dizem os ianques, ‘2 shits and a flying fuck’ para o que acham ou deixam de achar. A grande maioria das pessoa vai fazer o que acham que devem. Reprovação moral? ‘2 shits and a flying fuck’ precisa de tradução? Fim da história.

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