Contos

Tempestade – por Caio Flávio Oliveira de Oliveira

O menino já tinha visto quase tudo no zoológico: os leões e os macacos, os tigres e as capivaras, os pássaros coloridos e raros; os bichos todos e seus mistérios. Por isto, perambulava por entre os outros visitantes, quando lhe chamaram a atenção as cobras trancafiadas em pequenas celas, expostas à curiosidade do público.

Estava assim entretido, o olho aceso na contemplação da cascavel e seu guizo, da jibóia e sua fama de engolidora de bois, quando algo maior despertou seu interesse. Foi numa fração de segundos, num instante em que ele, tomado de espanto, voltou-se para dizer olha, pai, que legal! quando viu o que jamais imaginava ver no zoológico. E vendo pensou que sonhava, e mesmo bem acordado como estava piscou duas vezes para se certificar que era real: há pouco mais de dez passos de distância, a mão do pai pousava sobre a mão de uma moça de blusa amarela e um pedacinho de papel escapava por entre seus dedos cabeludos, aninhando-se na mão feminina. Uma ínfima fração de tempo, mais nada, aquela em que o menino percebeu o olhar devorador do pai e a moça, como um pássaro, aprisionada naquele olhar.

Então ele engoliu em seco, e percebendo que os olhos do pai, como  brasa viva, deslocavam-se em sua direção e pousavam sobre ele, voltou rapidamente o rosto e ficou firme, fingindo admirar as cobras que atiravam botes ao ar numa coreografia de dançarinas. Já não achava graça alguma naquilo que há pouco tinha prendido sua atenção, o pensamento lá atrás, no que vira por descuido, e que agora lhe constrangia como se flagrado espiando por uma porta entreaberta– o que havia por trás da porta o menino não sabia, pois no terreno do saber conhecia pouco, mas adivinhava com o poder dos pressentimentos (que nos meninos são fortes), assim como quem advinha fome no olhar das cobras.

 Ficou ali um tempo que custou a passar, o rosto colado nas grades, a cabeça latejando, os pés feito duas estacas cravadas na terra. Uma sombra nublando seus olhos como se sobre eles tivesse baixado uma cortina rendada, impedindo o gostoso do resto do domingo. Já se sentia arrependido de ter planejado aquele passeio, de ter sonhado com aquele momento, seguro pela mão do pai, irem ao zoológico para uma tarde só deles, a fim de resgatarem a semana de ausência: ele na escola, decifrando palavras novas; o pai descobrindo as engrenagens das máquinas em que trabalhava. Juntos, só à noite, na hora do jantar, para uma troca de palavras ligeiras, pois enquanto um dormia cedo por causa da escola, o outro recolhia-se após palitar os dentes com um tchau, guri, dorme bem. Entre eles uma distância grande para ser compensada num feriado qualquer de muito sol.

Estava assim, naquele enredo de pensamentos, um desagrado medonho lhe roendo por dentro, um súbito desejo de voltar para casa, quando ouviu o chamado do homem naquela voz que parecia não ser a sua. Até pensou em fingir-se de surdo, mas renegou a ideia por ser um malfeito grande, daqueles que, em outras ocasiões, lhe renderiam um puxão de orelhas. Outro dia, talvez, pois, naquela tarde, o pai  repetiu o chamado numa paciência que não lhe pertencia, num tom diferente, amaciado demais para o seu tranco, sempre apressado, falando alto, soltando um que droga, guri, parece surdo! Agora, vinha com suavidade e riso dizer Então, meu filho, vai ficar parado aí a tarde toda? Não demora vai chover e ainda temos que comprar pipocas. Como fingir-se de surdo a um pai que falava assim, com uma doçura de mel que nunca antes pusera na boca? Deixa as cobras, filho. Tem outros bichos pra ver. Vamos procurar um pipoqueiro.  Seria um tremenda malcriação não olhar para aquele pai, não ceder ao seu abraço apertado, o braço comprido cingindo-lhe os ombros, numa intimidade que, naquele momento, incomodava.

Foram os dois, o menino meio arrastado, pisando duro, cabeça baixa, seguindo a própria sombra. O homem rindo largo como há muito tempo não se ria, casmurro que era, de falar sério e repreender bobagens. Abanando os braços, cumprimentando uns conhecidos, procurava com urgência um carrinho de pipocas, como se daquilo dependesse a salvação do mundo ou da tarde do domingo. Depois iriam ver as onças e os rinocerontes, dizia, e antes da chuva, anunciada no quente da tarde, estariam em casa. O menino, que lambia-se por um saco de pipocas, nem queria mais, num fastio de tudo, até mesmo de fazer perguntas. Ele que  nunca tinha visto uma rinoceronte, mantinha-se quieto, sem vontade de beber dos conhecimentos do pai. Queria era entender outra coisa, adulta demais para sua idade de onze anos. Um bom saco de pipocas trocaria por uma explicação clara, de homem para homem, como se julgava ao saírem aos domingos. Se o pai e a mãe se gostavam tanto que até fizeram ele porque o pai tinha que devorar com os olhos a moça de blusa amarela como as cobras devoravam os alimentos fornecidos pelo tratador? Lembrava, de ter guardado na retina, naquela diminuta fração de tempo, que os olhos do pai sobre a moça eram de bicho sem jantar na sua natureza instintiva de predador. Mas se ele e a mãe se queriam muito que até dormiam juntos na mesma cama, e diziam guri, vai dormir na tua que nós precisamos ficar sozinhos, porque seus dedos cabeludos, como garras de um animal que cerca a presa, tinham escorregado papelzinho na mão daquela estranha? Pipocas salgadas ou doces e a  visão de todos os bichos do zoológico ele bem que trocaria para ouvir uma resposta sincera às suas dúvidas.  Mas como era pequeno demais para tão grande assunto, e como o pai se mostrava um bicho diferente, recém descoberto no zoológico, calava perguntas, retesando o corpo, a frágil mão segurando mole na mão imensa.

Sentaram-se, cada um com um saco de pipocas, junto à margem de um lago onde nadavam peixes. O pai comendo com ruídos, mastigando com vontade; ele, mal e mal, mais deixando cair no lago grãos de milho, que sumiam fazendo bolhas na água limpa. O homem querendo saber o que ele tinha, se estava emburrado, se não gostara do passeio. As palavras lhe faltando, dizendo apenas uma mentira ingênua (apesar de ter sido ensinado a não mentir, que era feio, que Deus castigava), falando de uma dor de garganta inventada, talvez princípio de resfriado. A cabeça pendida, a voz soando falso como tudo, agora, lhe parecia falso naquela tarde. Roendo as pipocas com prazer, o pai começou então uma conversa esticada, falando de coisas que as pessoas julgavam ver, mas que não viam, que era muito fácil acontecer quando se estava distraído. O menino, catando aqui e ali um grão de milho, tinha visto com certeza a moça de blusa amarela e seu jeito de pomba nas garras do pai, o papelzinho passando de uma mão para outra. O homem falava palavras tortas, seu olhar sobre ele enviesado, dizendo coisas que nem ele ( pai) acreditava. E Pela primeira vez, também, o menino o ouvia sem confiança, não como das outras vezes em que recebia seus conselhos com atenção e respeito, pois aquele era um pai de antes, bem antes da moça de blusa amarela.

Enquanto amassava distraído o seu saco de pipocas vazio, como quem apalpa no escuro procurando luz, o pai ia tateando as palavras que vinham escassas, entre pigarros e gestos vagos, um grito de  olha, lá, que zebra bonita e um comentário qualquer sobre as nuvens pesadas no céu, presságio de tempestade. Foi encompridando a conversa, até que falou na mãe e no nervosismo dela. E que ele sabia, não sabia? como a mãe era nervosa. Então, não era? E desconfiada, guri, muito desconfiada. Pois era melhor protegê-la de certas coisas, nem tudo ela precisava saber, entendia? Não, o menino não podia entender, pois com a mãe falava tudo, dos acontecidos na escola, das conversas com os amiguinhos. Com o pai não falava porque não havia tempo, mas se tinha boa memória, havia sido ele próprio, num dia de conselhos retos, quem havia lhe dito dos pais não se esconde nada, a gente conta tudo, guri. Como proteger a mãe sem contar o que via, se era ela quem lhe desvendava os mistérios, abrindo-lhe as portas do que desconhecia na tão tenra idade do querer saber de tudo? O pai de antes da moça de blusa amarela não era o de agora, isto o menino compreendia muito bem.

Vamos embora. Pensou em convidar, mas a mão calcada sobre seu ombro lembrou-lhe a pata do tamanduá- bandeira que vira ao chegar no zoológico. Um leve calafrio percorreu o corpo do menino, fazendo-o estremecer, enquanto o homem, enrolado nas palavras, falava em segredo. Tu sabe o que é um segredo, meu filho? Ele respondeu que sim, olhando para as águas do lago, como se ao olhar para o pai tivesse que despender um esforço enorme, descomunal para ele, pequenino que era. Na escola tinha aprendido aquela palavra e seu significado. Voltara para casa pronunciando-a com força, guardando-a com zelo de quem guarda coisa nova. Largou-a no meio da tarde, enquanto brincava no quintal e a mãe batia roupa na tábua do tanque. Sabe o que é, mãe? Ela sabia, mas esperou ele decifrar a palavra com gosto de menino estudioso e depois confirmou aplaudindo, dizendo que segredo era aquilo mesmo, algo para ser guardado na concha do peito, só não valia para pais e filhos, pois entre eles não podia haver segredo. Tem coisas que a gente vê ou ouve que são assim, guri, um segredo que deve ficar apenas com a gente. Falou o homem, e o menino se enganava ou sua voz estava novamente diferente, outra vez carregada como o céu daquela tarde. Então era isto? Guardar na concha do peito a existência da moça de blusa amarela, chegar em casa e dizer tudo bem, mãe, vi as capivaras e as cobras, o tamanduá-bandeira e o mico-leão-dourado. Foi uma tarde divertida. E se dissesse também ah! ia me esquecendo, vi o pai enfiar um papelzinho na mão de uma  moça de blusa amarela. E se falasse que ele até pediu segredo e o abraçou de um jeito diferente, o que aconteceria?

Tá te sentindo bem, meu filho? Novamente a voz macia  trazendo o seu pensamento para perto, para a algazarra de duas meninas que corriam pelo zoológico. Quis dizer que sim, mas engasgou vendo os olhos dele tentando decifrar a lonjura que havia nos seus. É melhor a gente ir embora, vai cair água em seguida. A frase assim pronunciada e o homem já em pé, ao seu lado, provocou-lhe o desejo de pedir para ficar ali para sempre, transformado em bicho do zoológico, em pedra à beira do lago. Mas isto ele sabia que era impossível. Tinha que voltar obediente pela mão do pai, levando a moça de blusa amarela como um segredo a ser guardado.

Fizeram o caminho de volta em silêncio. O lotação cruzando as ruas tristes do domingo. O pai cochilando no banco, exausto de tanta conversa. Ele de olhos abertos, chateado demais para dormir. Entre os dois alguma coisa quebrada, como um vaso caro partido ao meio. Na esquina da casa, desceu atrás do homem, e como começasse a chover teve vontade de permanecer na chuva, lavando-se nas águas que vinham das nuvens. Mas com um grito de vamos, guri, sai da chuva, correu para chegar à soleira da porta, onde já o esperava o pai de antes com um xingão e uma advertência de  se já tá ruim, droga, tu vai ficar pior se pega chuva. Nem mesmo o esperou entrar para  bater a porta, indo ao encontro da mulher no corredor da casa.

Então o menino a viu, a mãe e seu sorriso, mais bela do que nunca, querendo saber das novidades, dos bichos e seus encantos. Tinha cobra, tinha? Ela perguntava, enxugando as mãos no avental. E os leões, e os macacos, eram bonitos, filho? Ele quis falar mas lhe faltaram as forças, até respirar se tornou difícil ao ver as mãos do pai em torno dos ombros da mãe, os olhos dele vigilantes, olhando-o por dentro, revirando-o. E sentindo-se pequenino, num mundo grande demais para sua compreensão, disse apenas que ia se deitar e saiu correndo para o quarto. Na concha do peito levava a moça de blusa amarela. Levava também um vendaval de ideias confusas, que se agitavam feito árvores em meio a  tempestade, ilusões que se partiam como fios em postes de luz tombados em noites de temporais.

Lá fora, a chuva confortando o domingo. Dos olhos do menino, águas antes represadas molhavam a fronha do travesseiro.

O conto
Tempestade, de Caio Flávio de Oliveira de Oliveira, de São Gabriel, conquistou o 1º lugar na categoria Contos no 29º Concurso Literário Felippe D’Oliveira, em 2006. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Alexas / Pixabay.

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