Artigos

De votos e devotos – por Orlando Fonseca

“Mas isso é hora de discutir se Deus deve estar na pauta das eleições?”

Pelo amor de Deus, mas isso é hora de discutir se Deus deve estar na pauta das eleições presidenciais no Brasil? Se bem que, se estamos discutindo também sobre as virtudes das urnas eletrônicas (testadas e aprovadas ao longo de 20 anos), se estamos, em pleno século 21, discutindo sobre os valores (históricos) da democracia, nada mais deveria nos surpreender.

Mas surpreende: fazer do processo eleitoral em curso uma “guerra santa” é colocar, na ordem do dia, um tema que não tem nada a ver com a lista de projetos e propostas a serem debatidos para orientar o eleitor na hora do voto.

Já não moramos em um “Patropi abençoado por Deus”, como anunciava a canção popular dos anos 60 do século passado. E, ainda que a Suprema Figura esteja no cotidiano, parece-me salutar não O envolver em disputa tão comezinha.

Nossa relação com o Divino é marcada por esta ambiguidade que salientei na ironia com que inicio este texto. Quando digo “nossa”, falo em seres humanos e, em especial, brasileiros. No meu caso, em particular, coloco em âmbitos muito bem definidos a fé e a razão.

O território místico carece de ações – poderia chamar de rituais – que visam abarcar a percepção da transcendência, emulando respostas no plano temporal para as grandes questões atemporais; enquanto que a razão preside a ciência, o método científico, trazendo respostas e soluções para problemas materiais, físicos, experimentados na realidade dos fatos terrenos.

Somos um país laico, ainda que a nossa Constituição, em seu preâmbulo, invoque o nome do Todo Poderoso: “Nós, representantes do povo brasileiro (…) promulgamos, sob a proteção de Deus”. Vamos considerar que esta entidade responda por todas as entidades superiores, em todos os credos, já somos uma democracia.

Daí a colocá-lo como debate eleitoral vai um desprestígio enorme, digamos, que beira a heresia. É bem verdade que as forças religiosas do país têm medido forças para constituir hegemonias em um campo alheio: o político. Um dos sintomas dessa excrescência, a meu juízo é a formação da chamada “bancada evangélica”.

Se ficarmos apenas no terreno teológico, já é possível confirmar o desvio temático. O próprio Mestre, aquele que trouxe o “evangelho”, disse: “Meu reino não é deste mundo”. Então, que diabos (desculpem o destempero) fazem os que se apresentam como seus discípulos, discutindo pautas terrenas no Congresso Nacional?        

Se colocarmos a questão da religião no espectro político vigente, vamos ter sérios problemas para definir uma práxis ideológica de Deus. O risco de colocá-lo na pauta político-eleitoral é desembocarmos em fundamentalismos, que beiram a barbárie (levando em consideração a interpretação do Livro Sagrado em certas culturas, pela qual discriminam a mulher, promovem a guerra e o terrorismo, e rejeitam os progressos da ciência e da tecnologia).

O momento é de se buscar formas muito terrenas de acabar com a fome de mais de 30 milhões de brasileiros, melhorar os sistemas de saúde pública, de estender as condições de uma boa educação para todos; estimular a produção, diminuindo os índices de desemprego e as estatísticas de violência urbana. Problemas que estão muito aquém do alcance de orações e preces, e só se resolvem com vontade política, a qual decorre de um projeto posto ao escrutínio dos eleitores atentos e não de um credo religioso.

 Deus até pode ser brasileiro, mas em vista dos problemas gigantescos do Cosmos, a condução desta terrinha está na mão do consórcio, resultante do processo que envolve a consciência cidadã e as administrações eleitas, pelo interesse do bem comum. No caso, Ele se manifesta na maioria que se forma e depois é com a gente.

Como dizem, Ele não joga, mas fiscaliza, e este é o trabalho da cidadania, que não se esgota no exercício do voto. Claro, alguns preferem deixar de cumprir a sua parte, e apelar para Ele.

Não caia em propaganda enganosa. Não dê voto a quem se diz devoto de uma religião só para receber seu apoio. Isso, por si só, não credencia ninguém a um cargo público, e ainda é um abuso da boa-fé do eleitor devoto.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

4 Comentários

  1. Teologia não me meto. É necessaria muita capacidade para tantos assuntos. Urna eletronica (tecnologia), ciencia politica, direito, politicas publicas, filosofia (politica e epistemologia) e teologia. Obvio que as pessoas que misturam o Transcendente não mudarão de opinião. Objetivo, como sempre, outro cacoete, é fazer com que terceiros façam um juizo de valor negativo das mesmas. ‘Concordando’ com a esquerda. Resumo da opera: ‘caixa de ferramentas’ vermelha é, nenhuma surpresa, bastante limitada; debates viram uma grande perda de tempo, saem do nada e vão para lugar nenhum. Sem falar na superficialidade, tão rasos que se fossem agua uma formiga nao molharia as canelas como dizia Brizola.

  2. Constituição:’ ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa[…] ‘. Direitos politicos são direitos, logo….Pauta das eleições presidenciais é o que a casa tem para oferecer. Nao adianta ficar (cacoete da esquerda; não o unico, Cristina Kirchner pode pegar 12 anos de chilindró). Pauta de uma bolha provavelmente, perfeccionismo no Brasil é até comico. Ou seja, ‘vontade política, a qual decorre de um projeto posto ao escrutínio dos eleitores atentos’ é a teoria. Alem da pauta religiosa discute-se de tudo, menos projeto politico. Objetivo é um ‘cheque em branco’. Alas, velho truque vermelho, as tres dezenas de milhoes ‘com fome’, um numero inflado, um problema exacerbado. Responsabilidade? Dos outros. Como sera resolvido? Nao se sabe, só falam nos problemas porque as ‘soluções’ são as que nunca deram certo em lugar nenhum. E diminuir o numero inflado depois é barbada, ainda mais com midia/jornalistas militantes. A fé na ‘causa’ move poupanças.

  3. Alás frase atribuida ao tio Alberto ‘A definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes’ Vermelhice tem muito pouco de racional

  4. Só porque as urnas ‘não deram problema’ (não se sabe, não foi feita auditoria; alás a famosa prova diabolica no direito) é permitido concluuir que nunca darão Obvio. Segundo, se a maioria dos tupiniquins converterem-se a uma determinada religião e resolverem mudar a CF para adotar preceitos religiosos é democratico tambem. Depois da Primavera Arabe quase aconteceu no Egito (Irmandade Muçulmana) e beira acontecer na Turquia. Sem mencionar incendios de Igrejas no Chile e repressão a Igreja Catolica na Nicaragua. Sem mencionar ideologias que propõe ‘soluções’ que nunca deram certo que se comportam como verdadeiras religiões.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo