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Venefício – o crime sub-reptício – por Marcelo Arigony

A “serial killer da feijoada” e ainda os monges que morrem ao “folhear um livro”

Quatro mortes em cinco meses. Um prato de feijoada servido com veneno. Uma mulher que se aproximava das vítimas com calma, servia confiança e entregava morte.

Chamam de “serial killer da feijoada”. Mas, por trás da manchete, há algo mais antigo e mais inquietante: o venefício – o homicídio cometido por envenenamento, a forma mais silenciosa e paciente de matar.

Nas aulas de Direito Penal, costumo dizer que o veneno é o crime da inteligência. Não precisa de força nem de coragem. Precisa de tempo. De cálculo. De dissimulação. É o crime sub-reptício: aquele em que a morte se aproxima disfarçada de convivência.

A qualificadora só existe quando a vítima não percebe o perigo. Se é obrigada a ingerir, se sabe o que está tomando, o crime já é outro. A cena de Game of Thrones ilustra bem: uma rainha é forçada a beber o próprio veneno. Ela sabe o que está acontecendo. Não há engano, há imposição. É cruel, mas não é venefício. O venefício exige o disfarce – o engano que mata.

O venefício é um desafio técnico e humano. A perícia precisa correr contra o tempo. O corpo fala, mas o tempo muda a voz. Dias depois, a química já não é a mesma. Numa exumação, a putrefação pode criar substâncias parecidas com o próprio veneno. E aí o perito precisa separar o que foi crime do que é apenas reação natural. No estequiômetro – aquele instrumento que mede proporções químicas – mora a fronteira entre justiça e erro.

O caso da feijoada mostra o quanto ciência e direito precisam caminhar juntos. Nenhuma pressa ajuda quando a prova é instável. O tempo é inimigo da verdade, e a pressa é o verdadeiro veneno da Justiça.

O cinema já entendeu isso há muito tempo. Em O Nome da Rosa, Sean Connery vive o investigador que tenta desvendar mortes misteriosas num mosteiro medieval. Os monges morrem ao folhear um livro sagrado – envenenado nas bordas das páginas. A metáfora é poderosa: o veneno que mata o corpo é o mesmo que tenta matar o pensamento.

Na vida real, o venefício também tem essa perversão. Ele destrói a confiança – esse acordo invisível que faz alguém aceitar um copo, um alimento, um gesto. É a traição dentro da rotina. A morte vinda da mão que oferece.

Esses casos exigem mais do que indignação. Exigem técnica e serenidade, porque o veneno não deixa testemunhas. Cada palavra mal dita num processo pode custar uma vida – e cada descuido pericial pode distorcer a verdade. O crime é dissimulado, mas o erro também pode ser.

O venefício é o espelho da confiança traída: mata devagar, sem barulho, à mesa onde antes havia convivência. E é por isso que ele continua sendo o mais perturbador dos crimes – porque nos obriga a olhar de novo para o prato, para o gesto e, sobretudo, para o tempo em que ainda  acreditamos estar seguros.

(*) Marcelo Arigony é Advogado e Professor, ex-Delegado da Polícia Civil e atual Diretor da ULBRA Santa Maria. Ele escreve no site às quartas-feiras.

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3 Comentários

  1. Resumo da opera. Um pais deste tamanho, com este tanto de gente e esculhambado. E só ignorar as cortinas de fumaça e as marketagens.

  2. Tudo muito ‘bonito’. Acusada é estudante de direito. Primeiro crime teria ocorrido em janeiro. Dois casos em abril e um em maio. Num dos casos de abril teria tentado incriminar um ex-namorado. Policia demorou. Ao menos o caso de maio ‘poderia ser evitado’. Lirismos a parte, coisas do Brasil.

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