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A semente da discórdia – por Márcio Grings

márcio chamada

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É bem verdade que eu podia ter resistido à força, com maior ou menor resultado, podia ter-me enfurecido contra a sociedade; mas preferi que a sociedade se enfurecesse contra mim, por ser ela a parte desesperada.”

Henry David Thoreau

 

Olha para o terreno e fica observando o matagal tomando conta de tudo. Na verdade, sua visão revela um mar verde de capoeira com uma casa semi-abandonada no centro daquele isolamento. Não se importa. As janelas começam a se desfolhar, as juntas se soltam, frestas aumentam entre as venezianas e a tinta descascada pelo sol é um sinal de que a renovação já é necessária. Faz tempo. Ruídos sucedem todo e qualquer movimento. A casa geme pedindo socorro. De todo o modo, gosta dessa sensação de que a aquela morada envelhece com estilo. Mas será que há algum tipo de charme na degradação? Ele acha que sim.

O limo toma conta da área dos fundos. Uma manta esverdeada impossibilita que ele ande de pés descalços pela laje. Umidade escorrendo, insetos transitando, rastros de lesmas e as pitangas apodrecendo a poucos centímetros da porta da cozinha são uma espécie de recado aos visitantes: ali vive um homem que não mais se importa com as suas coisas. A roupa na cerca virou um painel imutável. Peças petrificadas. Quando está sem óculos, os fios de luz parecem teias de aranha. Musgos apontam entre os arames.

O espelho do banheiro trincado, o chuveiro pingando, as lajotas incompletas como um quebra-cabeça com peças perdidas, as janelas fechadas e a estante ruindo pela atividade dos cupins dizem tudo. A semente da discórdia dentro dele foi semeada por ventos passados. Não sabe bem que jogou a droga dos esporos. Na biologia, esporos são formas latentes de muitos animais ou embriões e de bactérias. Um esporo é basicamente uma célula envolvida por uma parede celular que a protege até as condições ambientais se mostrarem favoráveis à sua germinação.

Pois é. Quem sabe ele esteja à espera de alguma condição adequada e só assim volte a produzir algo rentável nos próximos dias. Sua cabeça é como uma Ferrari de última geração pronta pra deslizar pelo mundo afora. No entanto, algo acorrenta o motor de partida, e o cara não sai do lugar. Olha pro painel, fica curtindo as luzes azuis, vermelhas e amarelo-alaranjadas brilhando como vaga-lumes sintéticos. Quase sorri ao ouvir o maquinário roncando feito uma guitarra elétrica. Porém, aquele automóvel potente não sai do lugar. Nem a pau. Bateria semi-morta? Se roncou, o bicho tá vivo.

Sua alma é como um esporo. Também está pronta pra voar. Mas a ambiência não parece combinar com aquilo que previu. Não sabe ler as cartas, as linhas de suas mãos não levam a lugar nenhum, está sem falar com Deus faz dias… Não quer ter por perto nada, ninguém ou algo que o lembre da raça humana, já chega ele mesmo. Só o bicharedo.

O matagal tremula ao sabor do vento. Cheiro de mato é algo reconfortante na visão dele. Aspira fundo e no fundo ainda acredita que algo pode acontecer e mudar tudo. Bem no fundo sabe que tudo vai ficar onde está. Bem fundo. Profundo esse troço.

Seis pássaros pretos se enfileiram no pinheiro morto. Há algo de bonito naquele bando.

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