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Dezembro às vezes esfria por aqui – por Márcio Grings

márcioEm primeiro lugar ele coloca o celular para carregar. Depois fecha toda a casa, soca algumas roupas dentro da velha mala verde, junta utensílios básicos e os espreme dentro de um compartimento. Fica uma zona, é claro! Depois faz a barba, cozinha dois ovos e prepara um café passado. Tudo ao mesmo tempo. Antes já havia regado as plantas, varrido a cozinha e pulverizado inseticida nas frestas das venezianas. Detesta a ideia de receber a visita de insetos em momentos inoportunos. Acontece o tempo todo.

Liga o rádio. Noticiário. Os cupins andam roendo o marco da porta, todo o dia um bocado de dejetos se acumula próximo ao extremo esquerdo do marco. Fruto do trabalho dos bichos. Senta no banco de madeira e fica olhando fixo pro nada por um tempo. O barulho dos pássaros lá fora produz uma orquestração ritmada de sons peculiares. Inutilmente tenta identificar alguns espécimes. Anu, sabiá e pardal.

Liga para o táxi. Tem meia hora pra tomar o café e checar se não se esqueceu de nada. Ele sabe: sempre deixa algo importante pra trás. Faz o desjejum enquanto lê uma revista Rolling Stone antiga. Matéria sobre Tim Maia. Detesta Tim Maia. Cara morrinha aos extremos e com um puta mau gosto quando gravou seus últimos discos. Não consegue entender aqueles reverberes e toda a punhetação instrumental. Bela porcaria. Tem pessoas (artistas) que envelhecem mal, Tim foi um desses caras. Não perde tempo ouvindo nada dele. “Salvo parte do material dos anos 1970, pouca coisa se salva”, pensa com seus botões.

Coloca talco nas botinas, as calça, para logo depois separar uma jaqueta contra a queda da temperatura. Sim, dezembro às vezes esfria por aqui. Enquanto escova os dentes se lembra de um Natal chuvoso em que o frio estava de bater queixo. Sempre que essa época do ano se aproxima, certa melancolia o espreita de leve, sorrateiramente, descortinando indesejadas lembranças adormecidas. Um dia liquida esses pensamentos e droga dos cupins. Um dia.

Ouve o taxista buzinando. Retira o celular do carregador, coloca o boné na cabeça, carrega a mala até a área dos fundos e fecha a casa. O rádio fica ligado conversando com as paredes. Uma cena que se repete incessantemente. Nuvens negras parecem promover uma nova conferência nos céus, bem acima da cabeça dele. Tranco o portão e antes de entrar no carro, não pôde deixar de perceber um ar frio percorrendo a espinha. Dezembro às vezes esfria por aqui. Esse ano não será diferente.

 

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