Coluna

Laerte livre – por Bianca Zasso

Os olhares ainda são incrédulos. Talvez serão para sempre. Mas a cartunista Laerte Coutinho demonstra muito conforto ao lidar com eles. Sim, porque por mais que muitos que acompanham sua carreira insistam que ele é “o” Laerte, sua escolha é por ser “a” Laerte. E isto não precisa ser entendido, mas respeitado. E respeito e carinho é o que não falta no documentário Laerte-se, dirigido pelas talentosas Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum.

A primeira produção em longa-metragem da plataforma Netflix no Brasil não poderia ter sido mais significativa. Num período polarizado não apenas no âmbito político, nosso país precisava dar seu pontapé inicial nesta nova forma de divulgação de produções audiovisuais com um filme cujo personagem é sinônimo de polêmica desde que assumiu-se como mulher, em 2009.

Antes dessa nova etapa em sua vida, Laerte já tinha o seu espaço na mídia graças ao seu trabalho brilhante de quadrinista. Suas tirinhas, publicadas em diversos jornais, eram precisas, ácidas, divertidas. E nunca pouparam sua autora. Seu traço facilmente reconhecível saiu um pouco de cena quando ela contou ao mundo algo que fazia parte apenas do seu mundo, até então.

Laerte agora entendia-se como mulher. Por inteiro. Isto porque ela deixa claro nos depoimentos concedidos a Eliane Brum, sempre atenta como boa jornalista que é, que seu desejo de assumir-se em outro gênero sempre existiu. E lhe fez sofrer algumas vezes. Estar preso podendo ter o direito de ir e vir. Assim era “o” Laerte.

Após a perda do filho Diogo, em 2005, algo despertou. Ela mesma se questiona no documentário sobre a morte despertar algo bom no outro. E não é julgada. Há um cuidado em fazer de Laerte-se um retrato das descobertas diárias de sua personagem e não uma série de respostas sobrem quem ela é. Até porque, ela mesma não conseguiu encontrar uma frase que abranja isto. E precisa? Esta é a pergunta.

Mais que um retrato dos novos hábitos de Laerte, o filme é sobre o eterno duvidar-se que deve ser a vida. Desde a primeira sequência, onde, numa troca de e-mails, Eliane e Laerte discutem se é o momento de iniciar as entrevistas, percebemos que estamos diante de um ser humano com dúvidas. Como todos nós. Sua “diferença” é ter nascido em um gênero e estar interessado em ser reconhecido com outro. “Estou fazendo uma investigação da mulher que posso ser”, diz Laerte. É o que todos deveriam fazer.

Laerte-se discute, sem entrar no discurso moralista, a opressão de trans contra trans, o dilema de colocar ou não silicone e o conforto que Laerte sente diante da própria genitália e que incomoda alguns. Laerte descobre-se diante de nossos olhos, seja conversando com um cirurgião plástico ou experimentando uma nova modelagem de vestido, tudo com um brilho no olhar.

Experimentar não é tarefa fácil, mas sempre há um prazer em estar diante do novo. Laerte vive isso constantemente. A simbólica reforma de sua casa acontece no momento em que seu corpo e seus hábitos se modificam. A câmera, sempre próxima do protagonista, não desvia seu foco nem diante da nudez do mesmo. Afinal, nada mais natural que um corpo humano, tenha ele a forma que tiver. O que muitos ainda estão fugindo de entender, Laerte-se faz sem pestanejar.

Em determinado momento do longa, Laerte diz que tem medo de que as pessoas descubram que ele é uma fraude e que considera seu traço imaturo. Os constantes convites para participar de debates sobre gênero o incomodam. Ele nada tem a declarar. Por ter tornado pública a sua escolha, muitos acham que ele quer levantar bandeira. Não que sua experiência não seja exposta em seu trabalho e em seu discurso, muito pelo contrário. Mas Laerte dá a entender que o que está acontecendo é natural para ele e deveria ser para todo mundo. Dúvidas são naturais. Gente bem resolvida ao extremo é coisa de ficção.

Laerte-se não é um filme para curiosos que enxergam a transsexualidade como algo bizarro, quase um circo de horrores. É filme para humanos dispostos a ouvir vários lados, em admirar uma nova realidade se desnudando e trazendo felicidade. Laerte está feliz como alguns cisgêneros dito felizes jamais serão. Laerte quer que sejamos livres e sigamos nossos dias. Laerte-se quer deixar um único e nada fácil recado: liberte-se.

Laerte-se

Direção: Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum

Ano: 2017

Disponível na plataforma Netflix

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