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O anjo cansado, a pomba e o suicida – por Márcio Grings

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Aquele anjo já ‘tava de saco cheio. Uma porcaria esse troço de ser anjo da guarda. Ficar protegendo um bocado de loucos era algo que detonava a paciência dele. Lá estava aquele ser alado completamente desmotivado em sua missão. E como sempre, inconfortavelmente invisível aos olhos do mundo. Imita uma estátua no 13° andar de um prédio, em pé, próximo ao precipício urbano. Olha pra baixo e sente uma vertigem de romper algo que parece imutável, eis a sensação.

Uma ilustração que ninguém vê. Ouviu falar dos anjos caídos, estava inclinado a virar um deles. Na verdade, o motivo de estar ali era o fato de estar guarnecendo, nos últimos dias, um louco suicida que estava despirocando de vez. Parece que o cara ia dar cabo da própria vida. Um tal de Beto, esse era o nome (ou apelido) do infeliz. O tipo se entope de remédios o dia todo. Entrou numa bad trip depois que levou um pontapé da namorada na bunda. Pois é, o sujeito meteu um par de chifres na mulher, e daí quando tudo veio à tona, ela colocou as coisas na mala e picou a mula. Nada mais justo. E lá estava o anjo dando um bico naquele idiota. É do jogo.

Senta na beirada do terraço, e assim o observa debruçado na sacada uns metros abaixo. Uma pomba pousa na guarnição, bem perto do aspirante a suicida.

– “Gruuu, gruuu, gruuu”, gorjeia o animalzinho de penas.

– “É… Tudo acabado, pombinha”.

– “Gruuu”, responde a pomba.

– “Ah, fiz uma cagada e não consigo me perdoar. Perdi a mulher da minha vida”.

– “Gru”.

– “Sim, eu sei! Mas não dá. Olho todos os dias pra baixo e penso que eu poderia encher os cornos de boleta e depois me atirar lá embaixo na avenida”.

– “Gruuuuuu”, responde a ave em tom de provocação.

– “Duvida? Vai ver! Peraí…”.

O anjo não acredita no grau de insanidade do homem. O cara ‘tá desabafando com uma pomba! “Que o Criador desabone tal estupidez”, pensa. Beto entra no apê, e o maldito pássaro continua lá, parado no mesmo lugar. O anjo cansado de ser anjo pensa: “Sabe de uma coisa? Nada pode segurar esse palerma”, conclui em seu próprio dilema interior. Ouve uma música de Ozzy Osbourne tocando a todo volume. “Suicide Solution”.

A pomba permanece no mesmo lugar. Esgravatando o metal como se tivesse um tique nervoso. Enquanto Ozzy destila sua versão etílica de como afogar as mágoas, a canção é interrompida por um urro gutural, animalesco.

-“Ahhhhhhhhhhhhhhh”.

E a pomba voa. Crash! O Anjo trava ao ver o cara despencando direto para a movimentada avenida. É. Inacreditável. O cara pulou. Lá de longe pode ver que deu uma merda danada. Caiu em cima de um carro estacionado. Os miolos do seu protegido saltaram na carrocinha de cachorro quente do outro lado da rua. O anjo suspira ainda desacreditando a cena que presenciou.

Ozzy continua cantando a mesma música.

Resolve descer até o apartamento. A pomba não está mais posicionada no seu púlpito. O anjo caminha pela sala e vê que o troço por ali tá bagunçado. Olha pra estante e vê uma garrafa de Jim Bean cintilando seu brilho dourado. Resolve tomar uma dose. Depois de uma cena daquelas, essa é a única coisa a ser feita.

– “Gruuuuu”.
A pomba! Olha pra sacada e lá está o bicho de volta a posição de minutos antes da tragédia. Ele tem olhos vermelhos, como um demônio. Antes de a música recomeçar, senta no sofá. “Um dia ainda vou fazer o mesmo”, pensa o anjo aborrecido. Não hoje. Olha pra baixo mais uma vez e vê as luzes de uma ambulância. Homens de branco e coletes fosforescentes recolhem o que sobrou do cara. A polícia em instantes deve subir até ali.

Vê uma carteira de Marlboro aberta no sofá. Fila um cigarro, puxa o isqueiro Zippo do bolso e acende um. Dá uma longa tragada e fecha os olhos pensando sobre quedas e a vida sem aquela droga de asas nas costas.
Enquanto isso, o pássaro urbano não tira os olhos dele.

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