Coluna

A pedra em nosso caminho – por Bianca Zasso

Poucas são as histórias que acertam o ponto ao falarem do desejo feminino. Quando não há uma tendência a retratar as mulheres como seres românticos ao extremo, existe o clichê da sedutora insaciável. Ou somos princesas ou femme fatales. As entrelinhas entre essas duas imagens são pouco ou nada exploradas. Um Instante de Amor, oitavo longa da também atriz Nicole Garcia, se aventura pelo viés mais complexo desses meandros.

Gabrielle, a protagonista, vive a realidade de muitas mulheres dos anos 50, época em que se passa a primeira etapa do filme. Ainda longe dos tempos da revolução sexual e morando numa comunidade rural junto com os pais e a irmã mais nova, a moça sente o desejo aflorar e, numa amostra de seu espírito livre, não faz questão de reprimi-lo.

O primeiro amor, pelo professor de literatura que lhe dá aulas particulares, surge primeiro como fantasia. Ao deparar-se com a assinatura de sua paixão num exemplar de O Morro dos Ventos Uivantes, Gabrielle lambe a caligrafia como se fosse parte do corpo do professor. Antes disso, a personagem já se apresentava curiosa sobre as possibilidades de prazer ao sentir a água de um rio tocar de leve embaixo de seu vestido.

Só que o que seria algo natural num mundo perfeito é a beira da loucura nos interiores da Europa. Seus arroubos de fúria por não ter seu interesse correspondido pelo professor logo são vistos com péssimos olhos por sua mãe Adèle, interpretada por Brigitte Roüan. A solução para uma filha que já está com fama de desequilibrada no vilarejo? Sanatório ou casamento, as duas formas mais tradicionais de sossegar uma mulher. Infelizmente, uma tese defendia por muitos até os nossos tempos.

Gabrielle opta pela que parece menos dolorosa, o matrimônio sem amor, e casa-se com José, um imigrante que trabalha como pedreiro. Não apenas por conta do pagamento do dote, a escolha dela por José se deve à sinceridade, já que ela o alertou que ambos serão infelizes.

Aliança no dedo e mudança para a região litorânea anunciam um segundo momento de Um Instante de Amor. Antes de falar sobre ele, vale ressaltar uma cena interessante: após um tempo vendo o marido perambular por prostíbulos, Gabrielle decide transar com ele. O sexo é mecânico e até a preparação da personagem parece seguir regras, como numa espécie de jogo.

Impossível não lembrar de Simone de Beauvoir e seu O Segundo Sexo, onde ela afirma que o casamento é uma forma de prostituição. Se oferece o corpo em troca de um teto. Triste, mas foi (e ainda é) o cotidiano de muitas mulheres.

Ao descobrir que uma doença renal (o “mal de pierres” ao qual se refere o título do livro que inspirou o filme) a impede de engravidar, Gabrielle é enviada para uma clínica, um lugar que a própria define como triste. Mal sabe que será naqueles corredores, entre um banho terapêutico e outro, que ela irá viver o seu instante de amor, a ilusão que tiraria o seu fôlego, tudo do jeito que ela sonhou.

O tenente André Sauvage (um sobrenome significativo) está muito doente e Gabrielle, quase como mágica, se encanta por ele e passa a cuidá-lo.  Eis o romance inebriante tão esperado, feito de detalhes como o toque na farda dentro do armário, o livro que ganha de presente e a música que ele toca ao piano. Os objetos são uma extensão de quem se ama.

Nicole Garcia, conhecida pela boa direção de atores, encontrou em Marion Cotillard sua protagonista perfeita. A beleza da atriz, aliada aos seus olhares e movimentos bem estudados, constroem uma Gabrielle única, cujo corpo é parte da paisagem, iluminado com suaves tons azuis e amarelos por Christophe Beaucarne.

O único problema é que, sem Cotillard, Um Instante de Amor não existiria. Mesmo nos momentos em que a trama parece perder o ritmo e entrar em detalhes que nada acrescentam para o seguir da história, é o jeito indomável e ao mesmo tempo amoroso de Gabrielle que nos prende à tela. É por ela que torcemos, por mais errante que pareçam suas escolhas.

Até que…o José de Alex Brendemühl tem seus segundos de brilho. É o seu instante. Logo depois, virão os créditos finais e a pergunta sobre o que teria sido do filme se Garcia tivesse voltado sua câmera também para José e suas dores. É compreensível que o carisma de Cotillard é irresistível. Mas haveria uma outra história, um outro sabor. Um novo filme, talvez tão bom quanto Um Instante de amor é.

Se falta capricho para falar do desejo feminino na sétima arte, talvez fosse bom começar a dar mais atenção ao verdadeiro olhar masculino sobre as mulheres. Não aquele machista que vendem por aí como sendo o normal, mas o genuíno, guardado a sete chaves por muitos neste nosso mundo onde ainda tem quem acredite que chorar é sinal de fraqueza e amar em silencio é coisa de mulher.

Um instante de amor (Mal de pierres)

Direção: Nicole Garcia

Ano: 2016

Disponível em DVD pela Mares Filmes

 * Esta colunista não pode deixar passar em branco um dos momentos mais tristes da nossa cultura. O INCÊNDIO ocorrido no Museu Nacional, na noite do último domingo, dia 2 de setembro, foi uma tragédia anunciada. Perdem o público, os pesquisadores e a nossa história.

Esta coluna é um lugar para falar de cinema. Mas de nada adiantam os filmes se não temos outras referências, se não houver troca de conhecimento. E museu devia ser a nossa segunda casa, um lugar para aprender de forma natural e divertida.

Aos que acham exagero as lágrimas dos trabalhadores e admiradores do Museu Nacional e aos governantes e presidenciáveis que se contentaram em lançar notas de pesar com sequer uma linha de conhecimento, fica o alerta: um povo que não valoriza sua cultura é um povo morto. E morto não vota.  

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