Coluna

Cordialidade assustadora – por Bianca Zasso

Quem gosta de cinema de horror costuma reconhecer suas regras logo nas primeiras cenas de um filme. A repetição de temas, personagens, plot twists e movimentos de câmera não são falta de criatividade, mas artifícios cinematográficos que ajudam a construir o estilo de um gênero. Porém, seguir uma receita nem sempre garante que o resultado irá agradar.

A cineasta brasileira Gabriela Amaral Almeida cresceu diante da tela da TV assistindo a exemplares que, em sua maioria, equivalem a um bolo mal executado e aprendeu a amar o imperfeito e fazer dele a principal referência do seu cinema. Sua última incursão pelo universo do horror é um gore que vai além dos litros de sangue.

O Animal Cordial, que entrou para o catálogo de algumas plataformas streaming, tem a morte como pano de fundo para um horror bem mais intenso: aquele que mora dentro de cada um de nós. Inácio (Murilo Benício) é dono de um restaurante e, à primeira vista, o protagonista do filme. Apesar de bancar o entendido em vinhos e carnes, é seu cozinheiro, Djair (Irandhir Santos) quem tem talento com as panelas e os temperos.

Num fim de noite, o único cliente ganha a companhia de um casal saído de uma festa. Os funcionários da cozinha estão exaustos e Inácio não faz questão de esconder seu descontentamento com eles. Apenas Sara (Luciana Paes) segue suas ordens sem reclamar. O modo como ela é tratada, tanto pelo chefe como pelos clientes, revela que a crítica social é o centro da história, mas não será apresentada de maneira comum.

Quando dois assaltantes invadem o estabelecimento, Gabriela aperta o botão do slasher, gênero que se caracteriza por conter assassinos em série, facas afiadas e jovens em perigo constante. Só que ao invés de investir na cópia, O Animal Cordial não nega suas raízes.

É uma história com personagens bem brasileiros, como o nordestino explorado pelo patrão, a moça rica que esnoba quem lhe serve… e o animal cordial, representado por Sara. Devota do chefe, por quem alimenta uma paixão, ela parece não se importar de colocar a própria vida em risco para ajudá-lo. E isso inclui matar. E muito sangue.

O Animal Cordial deve muito de sua potência ao seu elenco. Luciana Paes está mais uma vez ótima, confirmando seu posto como uma das melhores atrizes do cinema brasileiro atual. Sua Sara tem a mistura perfeita entre inocência romântica e tesão incontrolável diante da possibilidade de conquistar Inácio.

Irandhir Santos também imprime verdade em Djair, um personagem que ganha a simpatia do público desde a primeira aparição. E Murilo Benício parece ter abandonado os vícios televisivos e constrói um serial killer único e convincente.

Para completar, Gabriela deixa claro seu talento para criar atmosferas (que já podia ser conferido em seus curtas-metragens A Mão que Afaga e Estátua!) e reforça a parceria com o compositor e companheiro de vida Rafael Cavalcanti, que criou uma trilha inspirada no melhor do rock progressivo setentista.

O horror é quase sempre associado ao masculino. A imagem da namorada que grita e agarra o namorado na sala escura é um estereótipo velho e gasto. Gabriela Amaral Almeida sabe disso e por isso não esquece de imprimir em seus trabalhos sua mão feminina. Não que ela pegue leve ou faça questão de ser boazinha com as personagens que cria. Mas seu cuidado com a criação de imaginários junto com sua equipe leva para a tela um resultado com acabamento que muitos diretores homens deixam passar batido.

Sara pode não ser a matadora do filme, mas é ela que sofre os horrores da opressão. Seu filme de terror começa bem antes do restaurante de Inácio virar um campo de massacre. É mulher, solitária e vive um amor platônico que vai causar mais que decepção sentimental.

O público, em sua grande maioria, ainda torce o nariz para exemplares de cinema de gênero feitos no Brasil. É estranho, já que muitos lotam as salas para assistir qualquer produção genérica de horror que estreia com uma esperança um tanto estranha.

Devíamos investir mais no horror neste país, dando atenção especial para o nosso sotaque, os nossos cenários e a nossa realidade surreal. Material inspirador não falta. Somos muitos animais cordiais. Mais assustadores que muito homem mascarado e de faca em punho.

O Animal Cordial

Ano: 2017

Direção: Gabriela Amaral Almeida

Disponível nas plataformas NOW, Vivo Play e Oi Play

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