Claudemir Pereira

ARTIGO. Débora Dias conta como surgem os crimes

Por que um fato se torna crime dentro da legislação de um país?

Por Débora Dias*

Para responder essa questão temos que analisar alguns aspectos, embora a pretensão desse artigo não seja ser eminentemente jurídico, mas apenas servir de reflexão, diria, uma reflexão mais breve, no sentido de entender do por que alguns fatos são crimes, outros não e se tudo que é criminalizado deveria realmente ser crime, qual a lógica disso tudo?

Inicialmente, quando entramos na faculdade de direito, nas primeiras aulas de Direito Penal, aprendemos que um dos princípios do Direito Penal é a “ultimaratio”, ou seja, a última medida jurídica a ser adotada ou, ainda, que quando nada mais funcionar dentro do direito (medidas cíveis, administrativas, etc) aí sim tomaremos o Direito Penal. Mas, por quê? Porque o Direito Penal atinge o direito à liberdade da pessoa, direito humano fundamental. A restrição da liberdade só deve ser aplicada em casos graves,por isso não é qualquer fato que pode ser criminalizado. Mas e a lei brasileira assim é pautada? Respeitando o princípio da Intervenção Mínima?

A resposta é não também. Aí nós passamos para a segunda análise, quem é que legisla? Os políticos, que não são seres extraterrestres não, são aqueles que colocamos nas bancadas legislativas para nos representar (bem? mal?), pois é, são eles que fazem as leis. E muitas vezes quando uma decisão política é tomada para a criação de uma lei, não se pensa o básico, essa lei é mesmo necessária, teríamos outras medidas a serem tomadas, outras medidas de políticas públicas mais interessantes que teriam um efeito melhor? Não, são criadas leis como resposta rápida para a população ficar quieta e parar de reclamar. Aí se diz, mas a lei existe, “se virem” e geralmente quem tem que ser virar é o sistema de justiça (polícia, ministério público, poder judiciário, defensoria, advogados, etc). Vou dar dois exemplos típicos de resposta à problema grave, mas sem efetividade. Desde 2019 porte ou posse de armas de uso restrito, aquelas que são definidas através de portaria do Ministério da Defesa, passou a ser crime comparado a hediondo, ou seja, as conseqüências jurídicas para quem for pego com esse tipo de arma são mais gravosas. Certo, mas a pergunta é: isso vai diminuir o tráfico de armas?

Não, não vai. As armas vão continuar entrando no Brasil.

Então essa é a melhor política pública para esse grave problem a?Mas foi uma resposta política, a lei. E aí passamos para análise de outras situações mais simples, como aquela do motorista de um coletivo urbano não parar no ponto para o idoso tomar o ônibus. Devido a isso ocorrer, qual foi a medida tomada? Tipificar ou criminalizar a conduta no Estatuto do Idoso, resolve o problema? Acredito sinceramente que não, talvez o melhor fosse uma grande campanha de nível nacional (educar os “mal educados”) para uma resposta mais efetiva.

Podemos citar inúmeros outros exemplos, mas o fato é que muitas vezes, somente usando do Direito Penal, a “ultimaratio”, é que pode ser chamada a atenção, da forma mais radical, já que outras não estão disponíveis como deveriam, para nem que seja de forma coercitiva. Sendo necessária a criminalização de condutas para responsabilizar criminalmente quem as cometer devido à seriedade da situação. Nesse caso, cito decisão recente do Supremo Tribunal Federal, em ação típica de ativismo judicial, o qual achou por bem “criminalizar” a conduta de homofobia. O STF,em decisão no dia 13 de junho de 2019, aprovou a criminalização da homofobia, na verdade, decidiu que enquanto o Legislativo não legislar a respeito, a conduta homotransfóbica (discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero) pode ser enquadrada dentro da lei de racismo, Lei n° 7.786/1989.

Isso significa o STF “legislando” em atividade atípica. Mas tudo isso teve uma justificativa, a demora do legislativo em tratar do tema. O Ministro Luis Celso Barroso disse: “Quando o Congresso atua sua vontade deve prevalecer. Se o Congresso não atuou, é legítimo que o Supremo faça valer o que está na Constituição”, referindo-se a questão da proibição de qualquer tipo de discriminação.

Segundo o Dossiê de Assassinatos de Trans e Travestis, em 2019 foram mortas 124 pessoas transexuais (dados do Instituto Brasileiro Trans Educação) e, ainda, segundo dados coletados e entregues para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em final de 2018, por Júlio Pinheiro Cardia, ex-coordenador da Diretoria de Promoção de Direitos Humanos entre 1963 e 2018 foram mortas 8.027 pessoas em razão da orientação sexual ou identidade de gênero. Em nossa região foram quatro mortes recentes de transexuais.

Dessa forma, fica evidente a necessidade de políticas públicas que vão além da criminalização da conduta, contudo a criminalização nesse aspecto nos parece importante para chamar a responsabilização penal de comportamentos transfóbicos, que incitam, discriminam e disseminam ódio contra a população LGBTTQ+. A discriminação é elemento que alimenta e fortalece o ódio contra esse grupo em estado de vulnerabilidade, dessa forma, fazendo com que eles fiquem sujeitos a todo tipo de violência, inclusive, a mais extrema delas, a que atinge suas vidas.

A conclusão que podemos chegar pode ser sintetizada quase de forma paradoxal dessa maneira.Temos que criminalizar somente condutas mais graves, que atinjam bem jurídicos importantes da vida do ser humano, mas em algumas situações são criminalizadas condutas de menor importância como resposta política a omissão do Estado. Ao mesmo tempo, por outro lado, há situações que urge a criminalização, que a mão mais pesada do Estado intervenha para tentar frear comportamentos nocivos ao ser humano, mas não se pode jamais esquecer, que somente a lei penal não muda uma cultura, não modifica comportamentos quando se fala em crimes como feminicídio, abuso sexual de menores, homofobia, a lei tem que vir de maneira indissociável com políticas públicas efetivas de prevenção.

*Débora Dias é a Delegada da Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate à Intolerância (DPICoi), após ter ocupado a Diretoria de Relações Institucionais, junto à Chefia de Polícia do RS. Antes, durante 18 anos, foi titular da DP da Mulher em Santa Maria. É formada em Direito pela Universidade de Passo Fundo, especialista em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes, Ciências Criminais e Segurança Pública e Direitos Humanos e mestranda e doutoranda pela Antônoma de Lisboa (UAL), em Portugal.

Observação do editor: Crédito da foto: Divulgação

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2 Comentários

  1. Falácias. Objetivo das leis é manifestar a reprovação social da conduta. Não impedir que aconteça, vide o ‘para quem for pego’. Na China, com aparato de controle gigantesco, é mais fácil. No Brasil o Estado, pela falta de recursos, é o que a casa tem para oferecer.
    Campanha a nível nacional é jogar dinheiro fora. Oliviero Toscani diz que a publicidade só conseguiu vender uma ideia, a de que funciona.
    Lei é a 7716. Penaliza discriminação e preconceito. Não sei como fiscalizam o preconceito, deve existir algum aparelho de leitura mental. Não punem muita gente com esta lei.
    Não legislar é decisão politica do Congresso. De novo choque de visões do mundo. Uma minoria ‘iluminada’ acha que partes do direito são como as leis da natureza (gravidade, genética, etc.). Corolário: todos tem que se comportar racionalmente o tempo todo.
    Não me ocupo com assuntos relativos ao Pessoal do Alfabeto. Porém, se o negócio são números, entre 1980 e 2010 aconteceu mais de um milhão de homicídios no pais. Ênfase na defesa de certas minorias é opção politico-ideológica.
    Alás, existe o ‘direito’ de cometer o crime (e de evadir-se da punição). Criatura pode efetuar a conduta, esperar para afastar o flagrante, apresentar-se com advogado, responder processo e ‘pagar o preço’. E uma escolha. Julgamento moral é irrelevante por diversos motivos. E só perguntar nas melhores faculdades de direito.

  2. Problema do direito é que nele tudo é um ‘constructo’, Soluções teóricas e mecanicistas para problemas idealizados sem muito contato com a realidade. ‘Ultima ratio’ é, como muito que se divulga ideologicamente, algo adotado em partes do ocidente. Longe, como os direitos humanos, de ser algo universal. E o tal choque de civilizações. Em Singapura meio quilo de maconha ou trinta gramas de cocaína levam a pena de morte. Na China lenocínio até pouco tempo atrás resultava em pena capital. Violência domestica (falam em 30% dos lares) é infração administrativa. Alguém poderia dizer que é problema cultural, bueno, sistema de castas da India tem mais de três mil anos.

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