Crônicas

Felicidade Transgressora – por Elias Araujo

“E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
(Clarice Lispector – Felicidade Clandestina)

Dia desses estava lendo uma matéria sobre leitura que focava especialmente no preço dos livros, como são caros e como é difícil uma pessoa comprá-los. Então me lembrei de um episódio marcante da adolescência, que, felizmente, não foi o determinante de minha personalidade e de meu caráter.

Aos primeiros sintomas da alfabetização, tornei-me membro assíduo da biblioteca municipal. Como podiam ter inventado algo tão extraordinário e ao mesmo tempo decepcionante, eu não entendia. Que fantástico entrar ali, pegar amizade interna com tantos livros, mas que tristeza não poder tê-los, não poder levá-los sem que se precisasse devolver.

A devolução doía em mim, como agulhas de injeção na minha magreza. Percebi que não havia jeito de ficar com os livros que levava. Então resolvi tomar contato com o maior número possível deles. Como eu era pequeno, precisava de livros pequenos. Levava-o para casa, protegido ao peito, como quem resguarda dos perigos o irmãozinho caçula. Lia, relia e relia… E no dia seguinte voltava à biblioteca para pegar outro. E depois outro. E mais um.

Até que a bibliotecária, provavelmente de mau humor, agarrou o livro que eu devolvia e resmungou:

— Você tem uma semana pra devolver. Não precisa vir aqui todo dia. A gente enjoa de ver sua cara todo dia.

Achei aquilo muito grosseiro, mas eu era tão inocente que apenas ri, peguei meu novo livro e só voltei lá uma semana depois.

Com o tempo, comecei a pensar numa maneira de não devolver os livros, de ficar com eles para mim, para que centenas de mãos de meninos e meninas não mais os conspurcassem.

Nunca usei a palavra “roubar”, porque eu ainda não havia avançado por esse degrau. Poderia enveredar pelos corredores das estantes, enfiar um livro na bermuda e sair com outro que eu menos gostasse na mão. Mas tinha certeza de que a moça veria algo estranho ou mais gordo no meu corpo magricelo. Provavelmente, ouviria meu pensamento que gritava através dos olhos. Então eu seria preso e minha mãe ficaria triste comigo. E o que era pior: nunca mais poderia pisar na biblioteca.

Quando a Ruth Rocha, a Ana Maria Machado, o Ziraldo, abandonaram-me, fui raptado pelos outros. Não pude resistir ao assédio e entreguei minha inocência a Jorge Amado, ao Nelsom Rodrigues. Porém, foi com o Érico Veríssimo que a minha paixão pelos livros amadureceu.

No auge da adolescência, descobri que uma editora estava relançando os livros do Veríssimo em uma coleção bonita, de capa dura a um preço razoável. Infelizmente, o preço razoável para mim já estava além das possibilidades.

Por duas semanas namorei O Continente, primeiro volume de O Tempo e o Vento, na vitrine da banca de jornal. Pedia dinheiro para meu pai, depois para minha mãe, guardava tudo, mas estava longe de conseguir o total. E logo já seria lançado o segundo volume da coleção.

Até que a ideia nasceu e atormentou-me durante alguns dias. Mas para pô-la em prática esperei por um dia frio. Vesti uma jaqueta jeans larga, peguei meus únicos trocados e fui para a banca. Havia algumas pessoas por ali, comprando, conversando, vendo jornais. Fingi me interessar por umas revistas de jogos.

Peguei algumas para escolher qual delas levar. Precisava ser verossímil.

— Moço — chamei e esperei, porque ele atendia alguém

— você sabe qual destas tem aquele jogo de zumbi?

— Não sei… — respondeu com má vontade para um menino que só levaria uma revista na promoção de um real. — Deve estar escrito na capa.

Continuei procurando. Do lado, aquela preciosidade encadernada em capa dura, cheirando a mundos distantes, papel novo mesclado com terra, com Ana e tropel de cavalos em pelejas.

Peguei-o. Coloquei-o por baixo das revistas.

— Todas essas aqui são de um real? — tornei a perguntar.

O monossílabo dele, seguido do desdém que levou seus olhos para longe de mim, proporcionou-me aquele instante trêmulo e de coração acelerado que introduz à queda.

Devolvi as revistas, peguei uma qualquer e me dirigi ao moço. O segundo em que me olhou no rosto durou o tempo de um promotor no julgamento. Já estava preparando minha defesa, lágrimas cínicas vieram-me antecipadamente, quando ele pegou meu real, simulou um “obrigado” entredentes e esqueceu-me.

Saí. As pernas desencontravam-se, os joelhos agrediam-se mutuamente. Coloquei a revista sob o braço e as mãos nos bolsos. Enquanto caminhava para longe da banca sentia uma felicidade imensa na ponta dos meus dedos, que, ocultos, acariciavam a capa dura do Veríssimo. Certamente ele me perdoaria por tê-lo enfiado às pressas e de ponta cabeça no bolso interno da jaqueta.

Seria felicidade mesmo, aquilo que sentia por possuir o primeiro volume da coleção?

A crônica
Felicidade Transgressora, de Elias Araujo, Américo Bras/ SP, conquistou o 2º Lugar na 36ª Edição do Concurso Literário Felipe D’Oliveira, em 2013. Sua publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Free-Photos / Pixabay.

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