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Perdas e danos – por Orlando Fonseca

E bem no meio de um fim de semana que corre sem sobressaltos, apesar das notícias, apesar de ainda serem altos os números da peste que nos fazem lembrar de que vivemos no meio de uma pandemia, somos despertados de uma quase letargia, com a informação de que perdemos alguém. Em meio a tantas perdas, seria uma a mais, se fôssemos tão somente um rebanho. Se tivéssemos perdido a virtude de ser o humano que somos, feitos de muitos, nem seria apenas uma perda em meio a tantas. Não termos perdido é que faz o dano ainda maior.

É preciso ter perdido completamente a sensibilidade, o senso de humanidade para dizer, diante da notícia de uma perda: a gente morre, e daí? Neste quase um ano e meio, fui tomado por esta urgência em evitar os danos de partidas abruptas. No entanto, foram muitos momentos em que notícias tais como perdemos N., perdemos D., perdemos F., perdemos, perdemos, perdemos… aguçou meu senso de querer saber que, de A. a Z. há tanto de mim que preciso guardar com o zelo mais caro que puder acumular dentro de mim os que subsistem ao meu redor. E o dentro de mim é uma porção que não se restringe aos limites da minha pele, do alcance da minha mão ou dos meus olhos. Chega de danos.

E no meio de tudo, ainda precisamos saber na notícia da perda, que alguém havia se perdido antes de nos perder. Depressão, escreve um amigo no WhatsApp. Alguém que se perde de si mesmo, que já não suporta estar consigo mesmo, que abre mão de conviver, perde-se por acúmulo de perdas. Os seres humanos, providos de inteligência natural, desenvolvem autoconsciência, sabem de si, sabem de seu lugar no mundo. Com poucos outros seres do planeta, têm consciência de que podem se desobrigar do que é, e deixar de ser. As máquinas, providas de Inteligência Artificial, ao menos até o estágio atual do avanço tecnológico, não estão providas desta capacidade. Estas podem emular sentimento, mas sem que isso vá além de algoritmos, que une máquinas com máquinas, apenas com o propósito de produzir, sem que isso seja convívio. Nós, feitos de matéria orgânica e das elaborações de nossa mente, vivemos da subjetividade que construímos em presença dos demais, não apenas para produzir ou reproduzir. Um efeito colateral importante de operar para existirmos, e nos sabermos pela conjunção de sentidos, símbolos, gestos, atos que nos integram, e com isso nos fazem gente. E gente é pra brilhar, como diz a canção.

Os protocolos de distanciamento social nos abrigam para evitar o pior. Mas nos obrigam a uma dieta de convívio reduzido, muito ao revés do que nos identifica no exercício de humanidade. Carecemos de praticar a fraternidade, a amizade, a reunião, a solidez da solidariedade. Isso é o que acrescenta, acumula o sentido de ser, dificulta o querer perder um pedaço. Meios de comunicação sofisticados ajudam a mitigar os danos, e evitar perdas maiores. Precisamos de todos, não largar a mão de ninguém, pois é mais fácil que se percam os que se isolam e que não querem encontrar, se encontrar. Ao acompanhar os noticiários em busca de informações sobre a peste, acalento a esperança de que se anuncie a volta da normalidade. Quando poderemos nos alimentar de encontros, sem temor, sem reservas, sem máscaras, sem distanciamento. Os encontros evitam perdas, os encontros diminuem os danos que aviltam o sentido de ser humanos. Temos de ir ao encontro dos que tendem a se perder de si mesmos. Estes precisam da vida de quem os busque. Precisam, urgentemente, ser encontrados, antes que se noticie que foram encontrados sem vida.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

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Um Comentário

  1. O bom e velho Número de Dunbarr.
    E, óbvio, Hitler, Mussolini, Mao, Stalin, Pol Pot eram todos humanos. Não chipanzés e nem marcianos. Alás, Khieu Samphan, alta autoridade do Khmer Rouge, um dos idealizadores dos Killing Fields (foi condenado judicialmente), tinha doutorado pela Universidade de Paris (não era o único intelectual do Khmer por lá). Tese sobre economia e desenvolvimento do Camboja, Teoria da dependencia tão querida de Efeagá. Pobreza do Terceiro Mundo seria culpa dos paises ricos e industrializados.
    Resumo da ópera: já se ouve o canto do cisne do idealismo.

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