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“O olhar masculino” – por Elen Biguelini

Escolhemos para o texto desta semana uma questão muito discutida na academia feminista, bem como nos grupos ativistas: a questão da representação feminina em filmes. O texto “From Visual Pleasure and Narrative Cinema” de Laura Mulvey, escrito originalmente em 1975, é ainda hoje o texto mais citado quanto à posição da mulher no cinema. Esta obra inova ao explicar porquê tantas mulheres se sentem excluídas das narrativas cinematográficas, ainda que hajam mulheres nos filmes.

Neste ensaio, Mulvey explicita que a mulher é apenas objeto do olhar masculino, não tendo poder de ação sobre ele e, desta forma, não tem papel no cinema, senão o de ser olhada pelo espectador e personagem masculino. Como para Mulvey “o lugar de onde vem o olhar define o cinema” (Mulvey, 1975: 165), a autora e cineasta tentou (através de um cinema avant-garde) tanto no seu pensamento teórico quanto em seus filmes romper com o padrão de desejo descrito por ela própria, no qual o homem relaciona-se com o que acontece na tela pelo olhar.

Para Mulvey, a câmera segue os olhos do protagonista, que olha para a mulher, enquanto o espectador (homem) assiste ao filme através dos olhos da câmera, assim, relacionam-se/conectam-se e ele observa a mulher em cena através dos olhos do protagonista.

A grande maioria dos filmes que foram feitos ao longo da história carregam em si este olhar. Mesmo quando a protagonista da obra é uma mulher, o foco dado pelos diretores é no corpo feminino. As mulheres se tornam objeto de desejo e, por muitas vezes, tem esta como sua única função na obra cinematográfica.

Ao utilizar Freud para a sua análise do cinema do “gaze”, Mulvey lembra a relação da posição da mulher na sociedade (imagem de falta, logo de desejo de possuir um pênis, que dela dá a psicanálise) com a posição da mulher no filme. Ela observa no cinema narrativo/hollywoodiano os mesmos padrões de poder encontrados na sociedade. É o homem quem comanda a narrativa, a qual segue os padrões patriarcais de ativo/homem, passivo/mulher. Desta forma, “o protagonista homem é livre para comandar o palco” (Mulvey, 1975: 164). O homem comanda a ação e o olhar, enquanto a única função da mulher é ser observada, sem ter disso conhecimento, é ser objeto passivo do voyerismo masculino.

Assim, toda a formação de um filme exclui o olhar, o desejo e a vontade feminina. É devido a isso que adaptações da obra de Jane Austen, de romances como “50 tons de cinza” ou outras obras escritas para mulheres, tem tido tanto sucesso na contemporaneidade. Pois nestes elas não são objeto do olhar masculino, mas são elas a comandar o olhar da tela – mesmo sendo estas obras adaptadas por diretores homens.

Ainda que não “de fato” um “olhar feminino”, estas adaptações permitem que as mulheres que assistem a estes filmes se vejam refletidas, veem seu desejo, suas vontades, como o foco cinematográfico. Logo, este tipo de representação cai no gosto feminino.

Nota-se que o texto do qual aqui falamos brevemente foi escrito em 1975. Ainda assim, são poucas as obras que podem ser citadas como tendo um “olhar feminino”, ou fugindo daquilo que se chama “male gaze”. A articulista mal consegue exemplificar. Filmes de diretoria feminina claramente são mais possíveis de questionar estas questões, e posicionar a câmera de forma a não objetificar o corpo feminino, mas infelizemente – mesmo após inúmeras discussões sobre o assunto – ainda vemos na fotografia de um filme imagem de mulheres de costas, com o foco da câmera não naquilo que vem, mas no seu corpo (em especial seu bumbum), ou representações que não passam o teste de Bechdel (que pergunta: O filme tem duas ou mais personagens femininas com nomes? Elas conversam entre si? Sobre algo que não um homem?) ou que não apresentam personagens mulheres com histórias, profundidade ou embasamento, mas que figuram-se apenas como acessórios para embelezar a obra -ainda que sendo o par romântico ou uma figura de relativa importância para o contexto.

O texto de Mulvey iniciou esta questão. Mas o debate e a crítica ainda tem muito a fazer. O cinema, apesar de muito mais igualitário do que em 1975, ainda tem muito a evoluir em termos de inclusão – e não apenas das mulheres.

Mulvey, Laura (1998). “Visual Pleasure and Narrative Cinema” [1975]. In Easthope, Anthony; McGowan, Kate. A Critical and Cultural Theory Reader. Buckingham: Open UP.

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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