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Colômbia: esperança que renasce na terra dos cem anos de solidão – por Leonardo da Rocha Botega

Onde os sonhos de Garcia Márquez se tornam realidade via Petro e Francia

“Na Colômbia, quem trabalha pela guerra é promovido e quem trabalha pela paz é perseguido”. Foram estas as palavras usadas por Gabriel Garcia Márquez para descrever a sua terra em uma de suas últimas entrevistas. Gabo, um dos maiores escritores da América Latina, falecido em 2014, parecia ter perdido a esperança de que alguma transformação ocorreria em seu país. O autor de grandes clássicos como “Cem Anos de Solidão” e “O amor em tempos de cólera”, ao longo de seus 87 anos, vivenciou quase um século de uma política marcada pelo revezamento das oligarquias no poder.

A Colômbia instituiu um dos sistemas eleitorais mais excludentes e corruptos do mundo, principalmente, a partir do bipartidarismo, pós-1948. Vivenciou uma sociedade violenta, caracterizada pela luta constante entre guerrilheiros, grupos paramilitares e narcotraficantes. Um país que, desde as últimas décadas do século XX, em nome de uma malfadada “Guerra às Drogas”, se converteu em parte do subsistema hegemônico estadunidense, se afastando de seus vizinhos e das iniciativas de integração regional.

Foi contra essa Colômbia, de braços abertos ao neocolonialismo estadunidense e de costas para o seu próprio povo, que Gustavo Petro Urrego e Francia Elena Márquez Mina construíram suas trajetórias. Petro e Francia foram eleitos no último domingo (19/06), respectivamente, primeiro presidente e primeira vice-presidenta oriundos do campo político da esquerda na História da Colômbia.

Derrotaram o candidato das oligarquias financeiras, Rodolfo Hernández, por 50,44% a 47,31%, totalizando um recorde de 11,2 milhões de votos. Representaram a ascensão da Colômbia profunda e invisibilizada, narrada em muitas das estórias escritas por Garcia Márquez.

Gustavo Petro é oriundo de uma família de classe média baixa da savana caribenha. Aos 17 anos, aderiu ao movimento guerrilheiro 19 de Abril (M19). Foi preso e torturado. Abandonou a luta armada doze anos depois, em 1990. Elegeu-se para Casa de Representantes do Departamento de Cundinamarca, onde se situa a cidade de Bogotá. Em 1994, devido a ameaças de grupos paramilitares, teve que deixar o país rumo ao exílio. Retornou em 1998, elegendo-se novamente representante da Cundinamarca.

Tornou-se um dos grandes opositores do governo de Álvaro Uribe (2002-2010). Nesse período denunciou firmemente a ligação entre políticos e paramilitares, bem como a violação dos direitos humanos pelas Forças Armadas. Em 2011, assumiu a prefeitura de Bogotá onde enfrentou diversos esquemas de corrupção, como o da coleta de lixos.

Sofreu um golpe, mas retornou ao cargo devido à mobilização popular e a condenação de sua deposição pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Deixou o cargo com 60% de aprovação popular, porém foi derrotado nas eleições presidenciais de 2018 pelo uribista Iván Duque.

Francia Elena Márquez Mina, que faz questão que ser chamada pelo seu nome completo “para não esquecer seus ancestrais”, tem 40 anos e uma trajetória marcada pela defesa das comunidades atingidas pelas ações das mineradoras. Mãe solo aos 16 anos, desde cedo conheceu a realidade do trabalho na mineração. Ainda adolescente trabalhou em uma mineradora artesanal. Com 21 anos teve sua segunda filha. Formou-se como técnica agropecuária pelo Serviço Nacional de Aprendizagem (SENA). Trabalhou como empregada doméstica para conseguir pagar seus estudos na Faculdade de Direito da Universidade Santiago de Cali, onde graduou-se em 2020.

Antes mesmo de se formar advogada, Francia atuou firmemente na defesa de sua comunidade. Em 2009, escreveu uma ação de tutela para defender o Rio Ovejas contra as atividades das mineradoras Corporação Autônoma Regional do Valle del Cauca (CVC) e Empresa de Energia do Pacífico (EPSA). Argumentou que tais atividades afetavam o direito de vida digna e eram realizadas sem consulta prévia à população local. Sua ação foi negada por duas vezes. Porém, a intensa mobilização daquelas comunidades levou a Corte Suprema de Justiça a conceder reparação coletiva aos conselhos comunitários da região de La Toma.

Em 2015, Francia organizou, juntamente com outras lideranças negras, a “Marcha dos Turbantes”, que percorreu cerca de 600 km entre Suárez e Bogotá. A caminhada das mulheres negras, que tinha como objetivo denunciar o garimpo ilegal nas comunidades quilombolas e o racismo estrutural colombiano, lhe rendeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos.

Três anos depois receberia o Goldman Environmental Prize, uma espécie de Prêmio Nobel Ambiental. Além das lutas raciais e ambientais, Francia também participou das discussões dos Acordos de Paz com a extinta guerrilha FARC-EP. Fez parte da Comissão Étnica para a paz e presidiu o Comitê Nacional de Paz e Reconciliação do Conselho Nacional de Paz.

Foi esta ligação entre o ex-jovem guerrilheiro convertido à democracia e a mulher negra militante da resistência ambientalista que despertou a esperança do povo colombiano. Embalada pelos gritos de “si, se puede” a vontade de mudança levou ao governo a primeira mulher negra vice-presidenta da História do país. Uma vitória que principia um “governo das e dos ‘ninguéns’ da Colômbia”, como definiu a própria vice-presidenta eleita. Uma vitória que fez renascer os sonhos coletivos na terra dos cem anos de solidão de Gabo e dos mais de quinhentos anos de exclusão de afrodescententes, indígenas, mestiços e do povo pobre. Uma vitória que abre a possibilidade de se iniciar uma nova História na Colômbia. Uma História que torne o país mais justo e seu povo mais digno!

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Nota do Editor. A foto de Gustavo Petro Urrego e Francia Elena Márquez Mina, presidente e vice eleitos da Colômbia, não tem autoria determinada. Mas foi reproduzida da partir do site www.telediario.ar e você pode conferir a imagem original AQUI.

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Um Comentário

  1. Duas coisas, é preciso parar de sonhar e ir trabalhar. Verbo que causa urticaria na esquerda. Segundo, podem ser tudo o que dizem ser, o que importa no final é o resultado. Na Argentina, outro governo ‘progressista’, inumeras greves, inclusive dos caminhoneiros por conta do preço do diesel. É crise em cima de crise. O papinho ‘daqui 50 anos o Tecnoparque será o Vale do Silicio’ só funciona com gente muito trouxa.

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