Olhos de Apu – por Bianca Zasso
Ser criança é uma dádiva. Mais de uma vez me deparei com esta frase. Tenho minhas dúvidas se ela condiz com a verdade, já que um ser dependente, cheio de dúvidas e que enxerga os adultos como gigantes não deve ter uma vida muito fácil.
Deixando de lado as dificuldades físicas, a infância pode ser a mais complexa das fases da vida. Afinal, é dela que brota a maioria dos nossos traumas, aqueles que só vamos tratar quando não somos mais crianças e tomamos a decisão de fazer terapia. Se ser criança não é fácil, o que dizer de ser uma criança numa terra pobre, que dá margem a poucos sonhos e onde os adultos lhe impõe regras nada infantis? Um dos personagens símbolo do cinema indiano sabe bem como é.
A canção da estrada, primeiro longa-metragem do diretor indiano Satyajit Ray, é um retrato sofrido de um garoto que encara seus primeiros anos em um caminho um tanto selvagem para alguém de aparência tão frágil. Apu, o protagonista, tem pouco mais de 6 anos e uma agenda que inclui ajudar a irmão mais velha, Durga, com os animais e ensaiar os primeiros escritos como autor de teatro, ofício que é o sonho de seu pai, que entre uma criação e outra, aceita qualquer trabalho para conseguir dinheiro.
Como as coisas não vão bem no vilarejo onde Apu e a família moram, o patriarca sai em busca de um salário melhor e deixa a esposa cuidando da casa. Durante meses, não dá sinal de vida. E nesse período, que parece curto na tela, mas é carregado de intensidade, alguns acontecimentos importantes vão marcar para sempre a vida de Apu.
A descoberta da desonestidade, a visão do trem, a única máquina que o liga ao mundo urbano e a primeira experiência com a morte. Esta última, responsável pelas cenas mais emocionantes do filme, onde os silêncios dizem tudo e os planos simples ganham o espectador por seus significados.
A canção da estrada dá início a Trilogia de Apu, que acompanha o personagem-título ao longo de sua juventude até chegar a vida adulta. Um marco no cinema oriental, o primeiro filme apresentou ao mundo o diretor Ray de maneira avassaladora, ganhando prêmios no Japão, nos Estados Unidos e no cobiçado Festival de Cannes.
Quem descobriu os filmes indianos via produções de bollywood pode estranhar o sucesso de A canção da estrada. Diferente das coloridas e dançantes produções mais recentes da terra do Taj Mahal, o filme de Ray flerta com o neorrealismo italiano, movimento cinematográfico que ainda fazia barulho naquele ano de 1955.
O livro que inspirou o roteiro, dotado de uma humanidade cheia de lirismo, mesmo com um cenário de catástrofe, tem a sua essência retratada no olhar dos personagens, que plantam em Apu um pouco de cada uma das dores do mundo e uma dose de esperança. Pequena, porém forte.
A canção da estrada é autêntico e as produções que deram sequência à trajetória do protagonista não alcançaram o mesmo patamar. Isto porque o Apu que se apresenta nos outros dois filmes não é mais dotado de inocência e seu olhar parece ceder mais como antes ao se deparar com as artimanhas do destino.
Sua irmã lhe apresentou o mundo e sua tia idosa lhe ensinou que uma hora teremos de deixa-lo. Sem elas por perto, parece que algo se perde e os olhinhos curiosos e despertos se escondem por trás da máscara do homem que ele se viu obrigado a se tornar. Porém, vez ou outra, eles ressurgem e Ray faz questão de enfatizá-los. Brilhantes, como o despertar da vida.
A canção da estrada
Ano: 1955
Direção: Satyajit Ray
Disponível em DVD no box Trilogia de Apu, da Obras-Primas do Cinema
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