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Contra a memória curta – por Bianca Zasso

É noite na cidade de Charlottesville, do estado americano da Virgínia. Mas não uma noite comum. Pelas ruas, centenas de pessoas das mais variadas idades carregam tochas e gritam palavras de ordem contra negros, homossexuais, imigrantes e judeus. Também fazem saudações nazistas uns para os outros. Entre os cartazes ostentados pelos manifestantes, havia frases como “Vidas Brancas Importam”, uma provocação ao movimento negro Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Parece a descrição de algum encontro do Klux Khan ou mesmo uma manifestação ocorrida antes da Segunda Guerra Mundial.

Mas isso ocorreu no dia 11 de agosto. De 2017. É por esse exemplo, que infelizmente não é o único, que alguns filmes merecem uma revisão, fazendo reacender a discussão de porquê, depois de todos os estragos proporcionados pela opressão, o racismo e o nazismo, ainda existam pessoas que vêm nessas questões uma alternativa para “tornar o mundo melhor”.

Malcolm X, lançado em 1992, é, antes de qualquer questão social, um filme de Spike Lee. Quem conhece apenas o básico de sua filmografia sabe que ele tem um estilo próprio de retratar o seu lar. Os bairros negros de Nova York ganharam uma paleta de cores que vão do roxo ao amarelo, contrastando com os prédios escuros e já sentindo as consequências do tempo. Essa assinatura é sentida em Malcolm X, o filme, em sua parte inicial, quando somos apresentados ao jovem Malcolm “Red” Little que, como outros jovens da vizinhança, queria uma vida de gângster.

A entrada daquele que seria um dos homens mais importantes para a luta dos direitos civis dos afro-americanos para o mundo do crime tem a luz e a cor do neon em todos os seus cantos. Os bailes cheios de swing, os ternos e chapéus estilosos e, é claro, as negociações que se davam nas sombras, fazem Malcolm conhecer um lado do mundo que, mais tarde, ele irá interpretar com um novo olhar. Lee mostra toda esta descoberta com seus ângulos preferidos, os contra-plongées que fizeram (e ainda fazem) seus fãs vibrarem ao reconhecerem sua marca registrada.

A prisão, momento também importante para o despertar do protagonista para as questões do povo negro americano, é breve dentro da trama, mas vale por mostrar o talento de Denzel Washington. Sua transformação, que não é simples ou “mágica” como outras histórias de redenção, é sentida de forma sutil, em olhares e gestos. A equipe de maquiagem e caracterização também possui seus méritos, mas a alma que Washington imprime ao seu Malcolm X é única.

A conversão ao islamismo e os primeiros passos como pessoa pública, que poderia ser um recheio repleto de possibilidades para Lee e seu elenco, acabam sendo retratados com uma pressa que destoa do ritmo inicial da produção. Para suas mais de três horas de duração, Malcolm X usa flashbacks demais e não se aprofunda justamente no período mais importante para a construção da figura de seu personagem para o mundo. Há um distanciamento da câmera, do roteiro e, por consequência, do público. Parece que deixamos de ouvir seus discursos na primeira fileira para ficarmos quase na saída do teatro. As descobertas das falcatruas de seu líder espiritual são descobertas num estilo que lembra dramalhões mexicanos, levando mais em conta o impacto que as notícias tiveram na vida familiar de Malcolm do que em sua construção sobre qual era a verdadeira opressão pela qual queria lutar contra.

Talvez o excesso de material filmado, ou mesmo uma vontade de Lee de contar tudo que Malcolm colocou em seu livro, tenha atrapalhado a construção de um bom filme no que diz sentido à forma. Em conteúdo, não se pode negar, até o que parece raso, em Malcolm X toca fundo.

MALCOLM X, Spike Lee, Denzel Washington, 1992

Espero ter ficado claro neste texto que o filme de Spike Lee não é uma obra-prima. Seus defeitos são facilmente reconhecíveis, e os mais radicais podem utilizá-los como desculpa para não dar a devida atenção a película. O que não tem perdão é uma geração conhecer mais da biografia de Hitler do que de Malcolm X e Martin Luther King. Apenas chocar-se com uma marcha de neonazistas tomando conta das ruas de uma cidade universitária não basta. É preciso ajudar a criar novos cidadãos com memória, que repensem os erros do passado e apontem soluções. Discurso que só contém os defeitos que abominados são fáceis de escrever. Chamar Malcolm X de bandido por ele ter incentivado seus irmãos negros a pegarem em armas para se defenderem da violência dos brancos parece fácil quando nunca se sentiu o preconceito na pele e por causa dela. Por séculos. É uma pena viver num país que apresenta a escravidão como algo que foi supostamente abolido por uma princesa e não se discuta os abusos, estupros e assassinatos sofridos pelos negros.

Malcolm X, o filme e o homem, precisam ser discutidos na escola.

Assim como Angela Davis e os Panteras Negras. Depois não adianta cobrar tolerância e respeito de quem estudou em livros que dizem que o mundo foi salvo e construído por gente branca.

Malcolm X
Direção: Spike Lee
Ano: 1992
Disponível em DVD

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