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Cobertura da pandemia da Covid-19 mudou para melhor o jornalismo brasileiro – por Carlos Wagner

A atuação fundamental dos profissionais para informar a população do país

Livros serão escritos sobre a Covid-19, um deles será sobre as redações brasileiras (Foto Marcos Santos/USP Imagens)

A vida de repórter é simples. Vivemos pulando de tragédia em tragédia. Ao final da cobertura, seguimos em frente, deixando para trás os personagens que fizeram parte da história que escrevemos. Levamos na bagagem o compromisso de nunca esquecer o que aconteceu, como foi o caso da cobertura da tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, em que trabalhei mais de um mês direto.

A cobertura da pandemia de Covid-19 foi diferente. Porque a tragédia estava dentro da nossa casa. Era a doença para a qual não existia um remédio específico, muito menos uma vacina. Isso significava que era real o medo de sermos a próxima vítima do vírus. Logo nas primeiras semanas após a decretação da pandemia, em 30 de janeiro de 2020, começaram a aparecer nos noticiários cenas de abertura de covas coletivas nos cemitérios e de caminhões frigoríficos estacionados nos pátios dos hospitais para armazenar os corpos das vítimas da doença.

No segundo semestre daquele ano surgiram as primeiras notícias sobre o desenvolvimento de vacinas. Enquanto vários países apostavam na eficácia do imunizante, o então presidente da República Jair Bolsonaro (PL) colocava as suas fichas na política negacionista do poder de contágio e letalidade do vírus.

A ideia do governo era que o Brasil tinha descoberto drogas milagrosas contra a Covid, como a cloroquina e outras besteiras. Até se iniciar a vacinação dos brasileiros, em 19 de janeiro de 2021, os dias que se passaram pareceram ser meses e as semanas, séculos.

Os brasileiros ficaram no meio do fogo cruzado entre as informações e recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a bem montada e lubrificada máquina de fake news a respeito da Covid do governo federal, que era comandada pelo Gabinete do Ódio, como foi apelidado pela imprensa um grupo de lideranças do círculo íntimo do presidente, coordenado pelo seu filho Carlos, que é vereador no Rio de Janeiro.

Para restabelecer a verdade, em junho de 2020 foi criado o Consórcio de Veículos da Imprensa (G1, O Globo, Extra, Estadão, Folha e UOL). Diariamente, o consórcio fornecia as informações básicas para a população: número de infectados, mortos, recuperados da doença no Brasil. Também se consolidaram ao lado das teses mirabolantes de Bolsonaro sobre a Covid um grupo de empresas de comunicação que viu nessa situação uma oportunidade de negócios, como a Jovem Pan.

Importantes entidades médicas também se alinharam com o governo na questão do uso de medicamentos sem efeito contra a doença. Uma delas foi o Conselho Federal de Medicina (CFM), uma autarquia federal que tem a missão de fiscalizar as práticas médicas. Muitos médicos, cientistas e especialistas também se perfilaram ao lado de Bolsonaro.

Na época, conversei muito com editores de noticiários de rádio e a maior reclamação deles era a dificuldade para preparar uma simples matéria de meia dúzia de linhas. Em parte essa dificuldade vinha do fato de que o Ministério da Saúde virou as costas para a imprensa. Dois ministros da Saúde, o então general da ativa do Exército Eduardo Pazuello (2020 a 2021) e o cardiologista Marcelo Queiroga (2022), foram os responsáveis por transformar o negacionismo em relação ao poder de contágio e mortalidade do vírus em política de governo.

Toda a história dos dois ex-ministros é contada no relatório final de 1,3 mil páginas da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19 (CPI da Covid), que funcionou de abril a outubro de 2021. O trabalho dos senadores da CPI da Covid colocou as digitais do governo Bolsonaro nas 700 mil mortes de brasileiros pelo vírus.

Na época, escrevi e falei em uma palestra online para colegas do interior do Brasil que os jovens repórteres envolvidos na cobertura do dia a dia dos noticiários estavam dando conta do recado. Apesar de todas as dificuldades que enfrentam para trabalhar, que somam a produção de matérias para várias plataformas (texto, áudio e vídeo) a um dos salários mais baixos já pagos para a categoria.

Lembro-me de ter sugerido, em uma dessas conversas, para os colegas se colocarem no lugar do leitor, uma pessoa assustada com o destino da sua família e esmagada por um montanha de fake news. Para essa pessoa, os noticiários passaram a ser o único farol que os guiava no meio desse rolo todo.

Tenho dito que ainda vamos escrever muitos livros, documentários e artigos científicos sobre a pandemia. Certamente que um desses será sobre as mudanças que a cobertura da pandemia trouxe para o dia a dia das redações.

Chamo a atenção para o seguinte. Uma coisa é o leitor tomar conhecimento, pelo noticiário, de um fato que afetará a sua família economicamente. Outra é saber de uma notícia que diz respeito à vida ou morte dos seus familiares.

Para arrematar a nossa conversa. Lembro que tenho 72 anos, e de 1979 a 2014 trabalhei em redação de jornal, me especializando na cobertura de conflitos agrários, crime organizado nas fronteiras e migrações. Ou seja, sempre vivi na correria em busca de histórias para contar.

Depois que saí da redação tenho tempo de ler, ouvir e ver tudo de interessante que estamos publicando diariamente. Não olho o que publicamos com a visão de um repórter que construiu a sua carreira na luta diária pela informação. Mas como um jornalista que troca ideias com colegas e com leitores.

Cheguei à conclusão que a cobertura das grandes crises é um berçário para o surgimento de novos repórteres e um cemitério para aqueles colegas que não entenderam o que aconteceu e escrevem bobagens. A pandemia foi uma grande crise agravada no Brasil pelo negacionismo do governo federal.

Por uma dessas ironias da história, no início do mês de maio, quarta-feira (3), os agentes da Polícia Federal (PF) cumpriram mandatos de busca e apreensão na casa do ex-presidente Bolsonaro e da ex-primeira-dama Michelle em busca de pistas sobre a fraude do cartão de vacinação do casal. Foi constatado que o cartão de Michelle não havia sido fraudado. Quanto ao de Bolsonaro a conversa é outra – há inúmeras matérias sobre o caso.

Dois dias depois do reboliço causado pela descoberta da fraude no cartão de vacinação do ex-presidente, a OMS decretou o fim da emergência global da Covid. Isso significa que cartão de vacinação não é mais exigido em lugar nenhum. Como diz um amigo e colega do jornal ABC Collor, de Assunção, Paraguai: “Cosas de la vida”.

PARA LER NO ORIGINAL, CLIQUE AQUI.

(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.

SOBRE O AUTOR:  Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.

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